Ação entre amigos

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Já investigada por suspeitas de sofrer influência política da família Bolsonaro, a Caixa realizou pagamentos irregulares de pelo menos R$ 30 milhões a associações de cartórios vinculadas a políticos da base aliada do presidente, como é o caso de Arthur Lira

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Pedro Guimarães e Michelle Bolsonaro. Foto: José Cruz/Agência Brasil

Sob a batuta de Bolsonaro, a Caixa Econômica Federal, o segundo maior banco estatal e o quarto no ranking nacional, transformou-se em um verdadeiro escritório de negociatas escusas. Presidido por Pedro Guimarães, fiel escudeiro do mandatário, o banco público efetuou pagamentos ilegais de pelo menos R$ 30 milhões a associações cartoriais associadas a políticos da base bolsonarista. Por essas e outras, a organização estatal já é, inclusive, alvo de investigações no Ministério Público Federal e no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A direção do banco é investigada também por suspeita de beneficiar amigos da família do presidente, especialmente da primeira-dama Michelle, dos seus filhos, principalmente o senador Flávio, e também dos aliados políticos do ex-capitão. Os repasses a essas associações de cartórios foram feitos no âmbito de contratos celebrados pelo banco com seus clientes de financiamentos imobiliários, sem qualquer tipo de licitação. O tema tem sido discutido na esfera judicial e culminou na abertura de uma ação no CNJ, responsável por fiscalizar e regular essas atividades no País. ISTOÉ teve acesso à íntegra do processo, no qual órgão público é categórico quanto a esses pagamentos considerados irregulares.

“O CNJ ratificou a liminar concedida pela Corregedoria Nacional de Justiça, órgão máximo regulador e fiscalizador de toda a atividade extrajudicial brasileira, que proibiu a cobrança de taxas e contribuições por serviços prestados por centrais cartorárias sem previsão legal”, diz o despacho assinado pelo ministro Humberto Martins, corregedor nacional de Justiça. “Não cabe a nenhuma central cartorária do País efetuar cobranças dos seus usuários, ainda que travestidas de contribuições ou taxas, pela prestação de seus serviços, sem previsão legal. A atividade extrajudicial é um serviço público, exercido em caráter privado, cujos valores dos emolumentos e das taxas cartorárias pressupõem a prévia existência de lei estadual ou distrital”, explicou. A decisão de Martins integra um processo que já tem mais de 1.600 páginas e enumera uma série de contratos firmados pela Caixa com essas entidades privadas, tais como associações dos estados de Alagoas, do Ceará, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Rio Grande do Norte, Bahia, São Paulo e do Maranhão. O CNJ procura entender a motivação desses repasses ilegais feitos pela Caixa, já que eles nunca deixaram de ser feitos: as suspeitas recaem sobre o fato de que eles tenham sido feitos por questões políticas.

A reportagem apurou que algumas dessas entidades são comandadas por pessoas com bom trânsito junto às autoridades importantes no Congresso, em especial políticos do Progressistas (PP), presidido por Ciro Nogueira, atual ministro da Casa Civil, e do Partido Liberal (PL), do ex-deputado Waldemar Costa Neto, que foi preso no Mensalão. É o caso, por exemplo, do que acontece com a Associação dos Notários e Registradores de Alagoas (Anoreg-AL), chefiada por Rainey Barbosa Alves Marinho. Só a Anoreg-AL é dona de um contrato de cerca de R$ 18 milhões para prestar serviços cartorários para a Caixa. Além de cristão fervoroso, Marinho é protegido pelo deputado Arthur Lira, presidente da Câmara (PP-AL). Ele também revela ter contato com figuras importantes no cenário nacional. No Instagram, Marinho postou uma foto ao lado de Lira, um dos maiores aliados de Bolsonaro. Na legenda, Marinho informou: “Hoje, começo uma nova jornada. Espero que com a ajuda de Deus possa iniciar um caminho por uma Alagoas melhor. Obrigado ao presidente Arthur Lira pela confiança”. A imagem foi publicada no dia 23 de julho deste ano.

Em suas redes sociais, o presidente da Anoreg-AL também postou uma foto com o ex-vice-governador do estado, Thomaz Nono (DEM), que acaba de virar União Brasil, e de quem se diz “amigo”. Marinho, que também já foi filiado ao DEM, mostra grande proximidade com o político. “Depois de muitos anos, eu caminho para uma nova etapa. Vim ofertar meu abraço a esse grande homem público, Thomaz Nonô, por todos os anos de amizade e militância nos quadros do Democratas”. A rede de relacionamentos do cartorário não para por aí. Ele ainda possui registros de encontros que teve com o líder do Podemos na Câmara, Igor Timo, e o líder do MDB, Isnaldo Bulhões. Lideranças políticas de Alagoas confidenciaram à reportagem que Marinho mantém ainda relações próximas com o deputado Sérgio Toledo (PL-AL), cuja família controla dois grandes cartórios do estado. Advogados ouvidos por ISTOÉ corroboram a sustentação feita pelo CNJ e explicam que as associações funcionam como uma espécie de intermediárias nesses casos, cobrando uma taxa adicional, e sem previsão legal, pelos serviços que prestam à Caixa. Marinho, contudo, disse que sua associação já suspendeu a cobrança considerada ilegal.

Influência

O MPF também começou a investigar se a primeira-dama Michelle Bolsonaro atuou em favor de empresários de quem é amiga para conseguir empréstimos na Caixa. Documentos que chegaram à procuradoria apontam que a mulher do ex-capitão agiu pessoalmente para que o dinheiro fosse liberado. Michelle teria feito esse acordo diretamente com o presidente do banco, Pedro Guimarães. A documentação indica ainda que os recursos foram liberados aos amigos indicados também pelo senador Flávio, o filho 01. Os empréstimos teriam sido feitos por meio do Pronampe, programa lançado pelo governo para oferecer dinheiro com juros mais baixos a micro e pequenas empresas durante a pandemia. Uma das empresárias supostamente favorecidas pelo pedido de Michelle foi Maria Amélia Campos, dona de uma rede de confeitarias de Brasília e amiga da primeira-dama. Tráfico de influência é a investigação que não quer calar.

OUTRO LADO

Em nota, a Caixa comunicou que todos os contratos foram firmados “em consonância com normativas internas e externas”. Leia a íntegra da nota:

A CAIXA informa que os contratos firmados com as Centrais Eletrônicas de Imóveis têm por objeto a tramitação de intimação de devedores fiduciantes e a consolidação da propriedade de imóveis dados como garantia por esses devedores, serviços estes inerentes aos Cartórios de Registro de Imóveis.

Essas Centrais Eletrônicas de Imóveis foram constituídas a partir de Provimentos das Corregedorias Gerais de Justiça locais, publicados em atendimento ao Provimento CNJ nº 47, de 19 de junho de 2015, (substituído pelo Provimento nº 89, de 12 dezembro de 2019).

São credenciadas pela CAIXA para atendimento ao processo de intimação/consolidação associações cartorárias de todo o país, em observância ao princípio da impessoalidade, sendo inclusive este o caso da Anoreg Alagoas (Provimento 014/2016 da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Alagoas). Todos os contratos foram firmados em consonância com as normativas internas e externas aplicáveis.

Destacamos que a CAIXA observa de forma irrestrita o Provimento nº 107 do CNJ, desde a sua edição, em 24/06/2020, segundo o qual somente podem ser cobrados pelas Associações de cartórios os emolumentos previstos legalmente para a contraprestação por serviços cartorários, regularmente praticados no balcão do cartório e cobrados de qualquer cidadão/empresa que os demande.

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