As descobertas sobre origem e história dos povos indígenas da América do Sul reveladas pela genética
Por André Biernath, BBC
Como os primeiros seres humanos chegaram ao continente americano? Como se expandiram por regiões tão diferentes, desde as geleiras canadenses ao litoral brasileiro? E qual era a relação entre os povos que dividiram territórios próximos, mas completamente distintos, como os Andes e a Amazônia?
Muitas dessas perguntas começaram a ser respondidas com mais precisão na última década, graças ao avanço da genética e das técnicas que permitem avaliar e comparar a ancestralidade de duas ou mais pessoas.
Mais especificamente na América do Sul, essas ferramentas de análise do DNA estão causando uma verdadeira revolução no conhecimento — e permitem entender melhor as origens e as histórias dos povos originários.
Esse trabalho é liderado por um grupo de cientistas do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP).
Nos últimos anos, a equipe coordenada pela geneticista Tábita Hünemeier publicou pelo menos três trabalhos que modificaram o que se sabia sobre as populações que já habitavam o continente bem antes da chegada dos europeus nos séculos 15 e 16.
“Graças à genética e à capacidade de processamento de dados pelos computadores, conseguimos hoje estudar essas populações de uma maneira muito mais profunda. A partir disso, detectamos mutações e traçamos a história desses indivíduos”, resume Hünemeier.
“Saber tudo isso é muito importante, porque temos praticamente um apagão da história indígena brasileira. Nas escolas, o estudo da época pré-colombiana não é obrigatório e, mesmo quando existem aulas sobre o tema, elas focam de forma superficial apenas nos incas, nos maias e nos astecas.”
“O DNA talvez seja a única maneira de reconstruir a história dessas populações”, completa.
Conheça a seguir as principais descobertas sobre o passado dos povos indígenas do Brasil e da América do Sul até agora — e o que ainda falta descobrir.
Os primeiros humanos nas Américas
Nas aulas de História na escola, aprendemos que a chegada dos primeiros indivíduos às Américas se deu pelo Estreito de Bering, um canal de gelo e terra firme que conectou a Sibéria, na Rússia, ao Alasca, nos Estados Unidos.
E esse trajeto continua a ser encarado como a principal — e talvez a única — porta de entrada para o continente. A partir dali, os grupos “desceram” até chegar à Patagônia, ao sul.
“Mas nossos trabalhos mostram que o povoamento das Américas é muito mais complexo do que se imaginava”, aponta Hünemeier.
Um dos conceitos que caiu por terra a partir das pesquisas da USP é a ideia de uma entrada única — ou seja, a teoria de que houve apenas uma incursão de seres humanos pelo novo território, que deu origem a todas as populações ameríndias dali em diante.
“Hoje em dia, vemos que foram vários fluxos migratórios. As populações vieram da Ásia e chegaram nessa região conhecida como Beríngia, que se conectava com as Américas. Mas elas permaneceram ali por cerca de 10 mil anos”, calcula a pesquisadora.
Depois, com a mudança nas condições climáticas locais — como a inundação desses territórios —, essas populações tiveram que sair da Beríngia e foram em direção ao que conhecemos hoje como Alasca e Canadá.
Outra vantagem dessa mudança de território pode ter sido a maior quantidade de recursos em terras americanas. Embora a porção norte do continente seja tão fria quanto a Sibéria, ela apresenta uma umidade maior, o que facilita o desenvolvimento da fauna, com mais possibilidade de caça e alimentos.
“Também vimos que essas ondas migratórias da Beríngia não aconteceram todas ao mesmo tempo. Elas ocorreram em levas, e grupos foram chegando aos poucos às Américas”, explica Hünemeier.
Outra descoberta interessante das pesquisas foi a de que algumas populações nativas da América do Sul, como os suruí, os karitiana, os xavante e os guarani-kaiowá, no Brasil, e os chotuna, no Peru, ainda trazem no genoma uma pequena, mas estável semelhança com povos da Austrália e da Oceania.
Segundo o trabalho, eles compartilham 3% do genoma.
Isso indica, segundo Hünemeier, que esses indivíduos seriam descendentes de uma daquelas primeiras levas que cruzaram a Beríngia há cerca de 15 mil anos.
Esse grupo antepassado é conhecido entre os cientistas como população Y (a letra inicial de ypykuéra, ou “ancestral” em tupi).
Que fique claro: não há nenhuma evidência de que povos da Oceania cruzaram o Pacífico e chegaram diretamente à América do Sul. O que muito provavelmente aconteceu, segundo os dados mais recentes, foi a migração deles para a Ásia e depois para a Beríngia.
Ali, eles se relacionaram com as populações que já habitavam o local — e uma fração do DNA desses indivíduos se preservou até hoje.
A (intensa) troca entre povos andinos e amazônicos
O biólogo Marcos Araújo Castro e Silva, que faz parte da equipe de Hünemeier, explica que, durante muito tempo, acreditava-se que as dinâmicas populacionais eram muito diferentes na América do Sul.
“Por um lado, teríamos grandes populações conectadas nos Andes, que teriam dado origem a impérios, como os incas. Do outro, acreditava-se que os povos da Amazônia eram pequenos e isolados”, contextualiza.
Em tese, essa teoria poderia ser explicada pelo DNA. Se isso fosse de fato verdade, a tendência era que a diversidade genética dos andinos fosse vasta — já que eles estariam em maior número e com comunidades conectadas —, enquanto os amazônicos teriam uma menor variabilidade genômica — porque seriam poucos e sem muita relação entre os grupos.
“Só que não foi isso o que vimos na prática. Com base na diversidade genética que encontramos entre os habitantes da Amazônia, podemos inferir que existiam grandes populações ali, com milhões de indivíduos”, pontua Castro e Silva.
Esse achado, aliás, vai ao encontro do que é observado em outras áreas do conhecimento. Em trabalhos publicados recentemente pelo arqueólogo Eduardo Góes Neves, também da USP, há estimativas de que a Amazônia teria abrigado entre 8 e 10 milhões de pessoas no passado, antes da chegada dos europeus.
Outro mito que cai por terra a partir das últimas pesquisas é a chamada “divisão Andes-Amazônia”. Segundo essa noção, existiria uma pretensa separação entre os povos que habitavam essas duas regiões, de modo que eles não se relacionavam.
“As análises genéticas revelam que isso não acontecia, e essas populações tiveram trocas e contatos”, afirma Hünemeier.
A grande expansão Tupi
“A expansão tupi é uma das maiores migrações da história da humanidade”, diz a geneticista.
“Em resumo, eles saíram do noroeste da Amazônia e andaram mais de 4 mil quilômetros para vários cantos da América do Sul. E isso tudo aconteceu em cerca de mil anos.”
De acordo com as pesquisas, essas populações tupi estavam em franco crescimento e foram margeando os rios ou a costa litorânea, em busca de terras férteis para a agricultura.
Esse fenômeno começou mais ou menos há 2,1 mil anos e teria atingido o seu pico no ano 1000, quando a população tupi teria de 4 milhões a 5 milhões de indivíduos.
“Antes, acreditava-se que essa onda migratória tinha acontecido por uma rota só”, diz Hünemeier.
Os trabalhos da USP mostram que a expansão se iniciou no noroeste amazônico e, já na origem, se desmembrou em três ramos principais.
A primeira parte seguiu até a Ilha de Marajó, no Pará, e desceu pela costa do Atlântico até o litoral sul de São Paulo — no caminho, deu origem aos tupinambá, tupiniquim e tamoios, grupos que se tornaram os senhores da costa litorânea e fizeram os primeiros contatos com os portugueses.
“Um segundo grupo foi em direção ao sul, na borda da Bolívia e Paraguai, e deu origem aos Guarani. O terceiro, por sua vez, seguiu para o oeste, na região da fronteira entre Brasil e Peru”, completa.
A pesquisadora entende que esse é um feito notável, já que falamos de uma sociedade que não tinha acesso a metalurgia ou exércitos organizados.
“Os tupis se locomoveram em grupos grandes e, conforme encontravam outros indivíduos, lutavam ou desviavam o caminho”, explica.
Uma evidência dessa “dominação” vem da Amazônia peruana: lá, é possível encontrar o povo kokama, que há gerações fala tupi.
Mas a análise do DNA de integrantes dessa população mostra que eles são muito mais semelhantes geneticamente aos chamicuro, que são seus vizinhos e falam a língua arawak.
“Ou seja, eles adotaram a língua tupi, mas, geneticamente, são mais próximos de outro povo”, explica Hünemeier.
“Essa pode ter sido uma assimilação cultural que ocorreu a partir da expansão tupi, e corrobora algo que já foi sugerido por estudos de outras áreas.”
A ascensão tupi foi seguida por uma queda vertiginosa.
“Tivemos o crescimento dessa população até chegar aos 5 milhões de indivíduos. Porém, um pouco antes da chegada dos portugueses, ela entra em declínio”, observa.
Ainda não se sabe muito bem os motivos disso — as principais suspeitas são mudanças climáticas ou uma tensão populacional por recursos cada vez mais escassos.
“Quando os europeus se instalam, então, acontece um desastre. A partir dali, estimamos uma redução de 98% na população tupi, números semelhantes ao que foi observado entre os povos que habitavam o México e a América Central”, calcula Hünemeier.
Os tupiniquim estão entre nós
Para fechar a lista de descobertas, o grupo da USP conseguiu restaurar por meio da genética a história e a origem dos tupiniquim.
Hünemeier conta que essa população era considerada completamente desaparecida.
“Eles não estão no censo do IBGE e eram declarados extintos desde o século 19”, diz ela.
Mesmo assim, alguns moradores de Aracruz, no Espírito Santo, sempre declararam pertencer à etnia tupiniquim.
A análise genética feita pelo grupo da USP mostrou que, de fato, os tupiniquim nunca foram extintos, e os genes deles estão presentes nesses indivíduos até hoje.
“Eles nos disseram que sempre lutaram muito para que fossem ouvidos. É claro que nós nunca duvidamos — se eles se consideram tupiniquins, são tupiniquins —, mas agora há um dado que corrobora e dá força ao que sempre defenderam”, destaca a geneticista.
Com isso, os indígenas tupiniquim de Aracruz se juntam aos tupinambá da Bahia e aos potiguara da Paraíba como os últimos remanescentes dos povos tupi que ocupavam o litoral na época das grandes navegações europeias.
Ela conta que, depois de concluir o estudo, a equipe de cientistas foi mostrar os resultados aos participantes.
“Daí, nós contamos que eles tinham vindo do norte, e não a partir dos guarani do sul, que chegaram a ser uma população de 100 mil pessoas e, hoje, são cerca de 3 mil”, afirma.
“E foi interessante ver os caciques dizendo que já sabiam daquilo tudo. Porque eles têm muito forte as questões da ancestralidade e da transmissão do conhecimento de geração em geração”, complementa.
Muito trabalho pela frente
Mas como é possível descobrir tanta coisa sobre o passado?
Castro e Silva explica que nosso DNA é formado por 3 bilhões de letrinhas (ou pares de bases nitrogenadas, no jargão científico). Elas formam o genoma e definem basicamente todas as nossas características físicas e condições de saúde.
“Dessas 3 bilhões, 99,9% são idênticas em todos os seres humanos. Mas há 0,1% que varia de pessoa para pessoa”, calcula o cientista.
Esse 0,1% pode até parecer pouco, mas, em um universo de 3 bilhões de bases nitrogenadas, representa um espaço para 3 milhões de “letrinhas” diferentes.
“Ao comparar isso, conseguimos inferir qual a relação entre dois indivíduos, de acordo com as mutações compartilhadas ou não entre eles”, diz o geneticista.
Ao coletar amostras de DNA no sangue e na saliva das populações indígenas, os cientistas usam equipamentos para fazer o sequenciamento genético. Depois, todas essas informações são comparadas e classificadas por computadores muito potentes.
E, embora o esforço de pesquisa já tenha encontrado algumas peças deste enorme quebra-cabeça, o trabalho está apenas começando.
“Queremos montar uma espécie de fotografia de como era o Brasil em 1499, antes da chegada dos portugueses. A partir daí, poderemos voltar ou avançar no tempo para entender as dinâmicas populacionais e migratórias”, avalia Hünemeier.
“Os indígenas são a população menos estudada do ponto de vista genético, então, precisamos fazer praticamente tudo desde o início”, pondera.
E, considerando as características da América do Sul, a genética talvez seja a mais poderosa ferramenta para reconstituir esse passado remoto.
“Na maioria das vezes, não encontramos registros por escrito, e o próprio clima dessa região dificulta a preservação de esqueletos de seres humanos ou animais”, complementa Castro e Silva.
“É claro que não andamos sozinhos e precisamos da antropologia, da arqueologia e da história, entre outras disciplinas”, acrescenta Hünemeier.
“Mas não há dúvidas de que estamos diante de um trabalho imenso, para o qual ainda temos mais perguntas do que respostas”, conclui.