Brancos usam ‘humor’ e ‘amigo negro’ para perpetuar discriminação, diz autor de ‘Racismo Recreativo’
Quando era criança nos anos 1980, Adilson José Moreira terminava o fim de semana angustiado.
Um dos únicos negros da escola, ele sabia que passaria a segunda-feira na escola ouvindo piadas racistas que os colegas reproduziam de programas de humor na TV, como Os Trapalhões, que era transmitido aos domingos na época. Mussum — personagem negro — era retratado como cachaceiro, malandro, preguiçoso.
“Essas crianças não vinham só contar piada, elas também não permitiam que eu participasse de qualquer atividade com elas. Nunca me convidavam para ir para a casa delas, não me escolhiam para trabalhos de grupo ou times de futebol”, diz Moreira, que é doutor em Direito Constitucional Comparado pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos.
“O problema não é só a piada, é como o conteúdo da piada determina o tratamento das pessoas negras em todos os contextos. As piadas expressavam um estereótipo do negro, e esse estereótipo me colocava na posição de alguém que não poderia ter respeito social.”
Enquanto crescia, Moreira observava como as pessoas brancas tentavam se eximir de responsabilidades quando eram acusadas de racismo. Usavam o argumento de que se tratava de uma brincadeira e citavam o fato de terem “amigos” ou funcionários negros como “disfarce” para o racismo que exerciam no dia-a-dia.
Profundamente incomodado com isso, Moreira decidiu se debruçar sobre o tema e escreveu o livro Racismo Recreativo (Ed. Feminismos Plurais), no qual cunhou o conceito que dá nome à obra.
Ele analisou centenas de decisões judiciais que terminaram na absolvição de pessoas brancas acusadas de injúria racial. Muitas justificavam ataques verbais racistas como sendo “brincadeira”. E alguns usavam a suposta amizade ou a relação cordial com negros no cotidiano como “álibi”.
“O humor racista é uma forma com que pessoas brancas e instituições controladas por pessoas brancas expressam condescendência e ódio por minorias raciais, para reproduzir a ideia de que só pessoas brancas podem atuar de forma competente no espaço público”, explica Moreira em entrevista à BBC News Brasil.
Moreira, que também é professor da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, em São Paulo, destaca que grande parte das piadas ou comentários racistas expressa a ideia estereotipada do negro como sendo violento, incapaz ou malandro; do indígena como preguiçoso; e do asiático como pouco viril. E a contínua propagação dessa imagem estigmatizada tem efeitos práticos na forma como eles são tratados pela sociedade.
“O objetivo do racismo recreativo é a manutenção da ideia de supremacia branca. Há um caráter estratégico. As piadas acontecem com frequência no espaço de trabalho e em situações específicas, como quando há possibilidade de promoção e pessoas negras, asiáticas ou indígenas são candidatas”, destaca.
Confira os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil – Qual a definição de racismo recreativo?
Adilson José Moreira – O humor racista é uma forma com que pessoas brancas e instituições controladas por pessoas brancas expressam condescendência e ódio por minorias raciais, para reproduzir a ideia de que só pessoas brancas podem atuar de forma competente no espaço público. É um meio dessas pessoas ainda manterem uma visão, uma imagem positiva de si mesmos. O racismo recreativo tem sido usado no Brasil e em outros países para reproduzir a ideia de que minorias raciais não são atores sociais competentes.
BBC News Brasil – De que maneira o humor racista se manifesta no Brasil?
Moreira – De diferentes formas e em diferentes espaços sociais. Ele está presente, por exemplo, em programas humorísticos e aparece por meio de representações estereotipadas de minorias raciais. O humor é uma mensagem. E, portanto, ele faz sentido dentro de um contexto social específico. Um dos objetivos do humor racista é a reprodução de estereótipos pejorativos sobre membros de grupos raciais. Por exemplo, um dos personagens humorísticos mais famosos da televisão brasileira é o Mussum, dos Trapalhões. Quais eram as características daquele personagem? Primeiro, o fato de ele ser um cachaceiro.
Em 90% dos quadros nos quais aparecia, ele queria beber ou ter acesso a bebida. Nisso você tem a reprodução da ideia do homem negro como cachaceiro e malandro. Também havia a representação dele como pessoa que não poderia ser objeto de apreciação estética ou que não poderia ser parceiro sexual ou amoroso. Em alguns episódios, apareciam modelos famosas, mulheres brancas, como Xuxa e Luiza Brunet, que morriam de amores pelo Mussum e João Macalé, outro personagem negro. E o elemento humorístico era exatamente a disparidade entre essas mulheres que representam um padrão ariano de beleza e duas pessoas vistas como feias, que são o oposto. O pressuposto era: como uma pessoa pode ser um parceiro sexual aceitável para essas mulheres?
BBC News Brasil – No seu livro Racismo Recreativo, o senhor analisa processos penais sobre racismo. Como o humor racista afeta decisões nos tribunais?
Moreira – Eu desenvolvi essa teoria com base na análise desses personagens de televisão e também de centenas de decisões judicias sobre injúria racial, na qual a injúria teve base no humor racista. E é importante analisar o conteúdo deste humor racista. Quais são os elementos mais comuns nesse humor, na representação dos negros? É o negro como malandro, como cachaceiro, como pessoa que não gosta de trabalhar. Há um caso, que eu analiso no livro, de um banco onde havia vários negros no departamento de informática. Os demais funcionários passaram a se referir a esse departamento como “a senzala”. “Ah, vou buscar um relatório na senzala. Vou falar com o pessoal da senzala”. O que motivou o processo judicial foi a demanda de determinados funcionários desse departamento de serem considerados para cargos de chefia. O chefe passou a dizer: “veja só, o pessoal da senzala agora quer assumir cargo de chefia”.
Então, os estereótipos raciais, por meio do humor, justificam as disparidades. A senzala era onde as pessoas escravizadas, que não eram vistas nem mesmo como ser humano, ficavam. Então, quando você traz essa figura para o atual contexto, você está dizendo: aqueles indivíduos são inerentemente inferiores, não são atores sociais competentes e não podem demandar nem o mesmo nível de respeitabilidade social nem as mesmas oportunidades das pessoas brancas.
BBC News Brasil – A piada no ambiente de trabalho é usada, portanto, como instrumento para impedir o acesso de pessoas negras às mesmas oportunidades de crescimento que as pessoas brancas?
Moreira – Um dos elementos centrais da minha teoria do racismo recreativo é seu caráter estratégico. As piadas acontecem com frequência no espaço de trabalho e em situações específicas, como quando há possibilidade de promoção e pessoas negras ou asiáticas ou indígenas são candidatas. Por exemplo, a piada sobre ausência de virilidade do homem asiático. Quando essas pessoas estão contando essas piadas, elas não estão falando sobre o tamanho do pênis do homem asiático, estão falando que ele não é suficientemente assertivo, que não tem o mesmo nível de comando, de agressividade e, portanto, ele é incapaz de exercer um cargo de gerente. Isso é uma ação coletiva para tornar o ambiente de trabalho insustentável, para forçar a demissão da pessoa negra, para ela ser substituída por uma pessoa branca. O objetivo do racismo recreativo é a manutenção da supremacia branca.
BBC News Brasil – De que maneira o humor racista se conecta com o mito da democracia racial, pelo qual o Brasil seria um país miscigenado e sem racismo?
Moreira – O humor racista está diretamente ligado à narrativa brasileira da democracia racial. 99% de todas as pessoas brancas acusadas de racismo utilizam o mesmo argumento: a ideia de que eles têm um amigo negro, uma empregada negra, um avô negro. O humor racista sempre foi elemento importante de exclusão social em diferentes partes do mundo: foi importante na exclusão dos judeus na Alemanha nazista e teve papel importante no regime de segregação racial dos EUA. Agora, aqui no Brasil, realmente há o uso estratégico do humor racista para preservar a ideia de cordialidade. 98% das pessoas acusadas de racismo levam testemunhas negras para dizer que não são racistas.
Há um caso patético de um senhor branco acusado de injúria racial, e isso chegou até ao Superior Tribunal de Justiça em que ele levou o porteiro como testemunha para que dissesse ao tribunal que ele dava bom dia e boa noite todos os dias ao funcionário. Ou seja, se ele cumprimentava o porteiro, ele não poderia ser racista. É a ideia de inocência por associação. Se eu tenho interações sociais com pessoas negras, se tenho amigo negro, se minha babá é negra, eu não posso ser racista.
Então, há duas coisas, o uso estratégico do humor racista e o uso estratégico na nossa cultura da cordialidade racial. E isso cola para muitos juízes. O juiz branco vê uma pessoa branca e estabelece relações de identificação com essas pessoas brancas. Atualmente, 83% das pessoas do Judiciário são pessoas brancas e heterossexuais que não têm nenhum contato com negros. Então, o juiz pensa, se eu mandar esse cara para a cadeia, isso vai complicar a vida profissional dele. Muitos juízes utilizam esse argumento de que veio uma testemunha que disse que a pessoa interage com negros, então o ataque racista teria sido só “um comentário infeliz”. Essa é uma das frases mais usadas em decisão judicial sobre injúria racial.
BBC News Brasil – Então, as pessoas usam o humor e a suposta amizade com pessoas negras como disfarce para poder perpetuar o seu racismo?
Moreira – Exatamente. É uma estratégia para manter uma imagem social positiva. No lugar de dizer “eu odeio, desprezo negros”, eu faço uma piada que me permite expressar a mesma coisa. Quando chamo negro de macaco, eu estou dizendo que não o reconheço como pessoa humana.
BBC News Brasil – Uma fala comum entre quem faz piada racista é dizer que não há ‘intenção’ de ofender. Como seu livro responde a esse argumento?
Moreira – Sim, um dos principais argumentos de quem comete crime de injúria racial é o da ausência de intenção, ausência subjetiva do tipo penal. A pessoa não queria ofender, queria simplesmente fazer graça. Há um caso de uma mulher negra que foi a um supermercado e quando ela estava pagando a mercadoria uma mulher branca se aproximou e disse: “você deve ter muito macaco em casa, você está comprando tantas bananas”. A mulher negra chamou a polícia, a mulher branca foi detida e processada. Mas, quando chegou ao tribunal de justiça, eles disseram, a intenção está ausente. Eles ainda deram um conselho a essa mulher negra, de que ela não deveria ser tão sensível se quisesse sobreviver socialmente.
O meu livro procura responder exatamente a esse problema da ausência subjetiva de tipo penal. Eu recorro a teorias psicológicas do humor. E uma dessas teorias é a Teoria da Superioridade, que começou com Aristóteles. Segundo essa teoria, a malícia é elemento central do humor. Nós rimos das pessoas que achamos inferiores, rimos das situações em que essas pessoas se encontram e achamos que estão em situações ridículas porque consideramos que elas são inferiores. O objetivo fundamental do humor hostil é a gratificação psicológica. Quando rio de piadas racistas, estou afirmando meu sentimento de superioridade em relação a esse grupo. Quando pessoas brancas contam piadas racistas, elas não estão procurando, como dizem várias decisões judiciais, buscar um ambiente de descontração. Essas pessoas estão procurando obter gratificação psicológica com a prática do racismo. Como não podem dizer abertamente que odeiam ou desprezam negros, eles utilizam o humor, porque o humor é socialmente aceito.
BBC News Brasil – Quando na sua vida pessoal você começou a ter consciência dos impactos do humor racista e ser alvo disso?
Moreira – Desde a infância, eu me sentia profundamente incomodado com duas coisas: primeiro, com a completa ausência de pessoas negras nos meios de comunicação, com a ausência de modelos positivos de pessoas negras na televisão. Para muitas pessoas, a televisão é a única referência de mundo e os meios de comunicação dizem: pessoas brancas são naturalmente superiores e negras, inferiores. Isso não é algo dito abertamente, como no caso de programas humorísticos como Os Trapalhões. Isso é dito pela ausência.
Como foi boa parte da minha infância e adolescência? Eu chegava na segunda na escola e vinha aquele tanto de crianças brancas reproduzindo as piadas que tinham ouvido no domingo. O problema não é só a piada, é como o conteúdo da piada determina o tratamento das pessoas negras em todos os contextos. Então, eles não vinham me contar piada, eles não permitiam que eu participasse de qualquer atividade com eles. Nunca me convidavam para ir para a casa deles, não me escolhiam para trabalhos de grupo, times de futebol. Então, quando as pessoas falam que algo é mimimi, é importante saber que as pessoas atuam a partir das ideias que elas têm na cabeça.
Elas não discriminam as outras e a polícia não vai às ruas com o propósito específico de matar negros, isso surge em função da reprodução dos estereótipos raciais negativos transmitidos na televisão e no cotidiano, por meio de piadas racistas. São os programas de televisão, além da própria cultura corporativa da polícia, que fazem os policiais acharem que podem matar pessoas negras sem maiores consequências.
BBC News Brasil – O que pessoas brancas devem fazer para contribuir para o combate ao racismo?
Moreira – Elas precisam reagir. Elas realmente precisam reagir. Quando ouvir uma piada racista, primeiro, não é para rir da piada. Depois, vou deixar claro para a pessoa que esse comentário é inapropriado. E é importante explicar para as pessoas as consequências da reprodução desses estereótipos. Então, dizer que quando você reproduz essa piada, você está propagando a ideia de que negros são inferiores. E ao fazer isso você reproduz uma cultura racista. Então, quando uma pessoa negra vai procurar emprego, aquela pessoa branca que está entrevistando, está com aquele estereótipo ativamente na cabeça dela, determinando a competência da pessoa negra em exercer aquela função.
BBC News Brasil – Como responder ao argumento cada vez mais utilizado nos dias de hoje de que tudo é mimimi, que, por exemplo, trabalhar pelo fim de piadas machistas e racistas seria mimimi?
Moreira – É muito fácil desconstruir o argumento do mimimi. É mesmo, é mimimi? Então me conta uma coisa: você gostaria de ser tratado pela polícia da mesma forma com que negros são tratados pela polícia? Você gostaria de ser tratado como pessoa negra no mercado de trabalho? Nenhuma dessas pessoas vai dar uma resposta positiva a essas perguntas.
BBC News Brasil – Que mudanças o senhor observa da sua infância para hoje em relação à consciência do Brasil sobre a existência do racismo no país?
Moreira – Minha infância foi durante a ditadura militar. Era um regime comprometido com a imagem do Brasil como uma democracia racial. E, dentro daquele regime, grupos sociais foram desmantelados e os militares sempre viram o movimento negro como ameaça, como perigoso. Houve uma política de reprimir qualquer mobilização em torno da questão da raça. A ditadura acabou, o movimento negro se rearticulou, tentou persuadir administrações sobre a relevância da pauta da justiça racial. Muitas responderam positivamente. Nos anos 2000, começam programas de ações afirmativas, negros começam a chegar às instituições e começam a produzir conhecimento. Hoje estamos num momento em que nunca se produziu tanta coisa sobre os diferentes sistemas de reprodução do racismo.
BBC News Brasil – Mas não estaria havendo, ao mesmo tempo, uma reação racista e ultraconservadora, nos últimos anos, aos avanços no debate sobre racismo?
Moreira – As últimas eleições presidenciais são um exemplo disso. O atual ocupante da Presidência disse repetidas vezes durante a campanha que, se ele fosse eleito, negros e indígenas não teriam direitos adicionais. E ele foi eleito em grande parte por causa disso, pela defesa de uma política racial de exclusão de negros e indígenas de qualquer forma de cidadania. E isso era exatamente o que parte da população branca, especialmente da classe média branca, queria ouvir: ‘temos um candidato comprometido com a manutenção do nosso status social privilegiado’.
Agora, ao mesmo tempo em que temos essa reação conservadora de parte das elites brancas aferradas ao sistema de privilégios, temos a iniciativa privada implementando programas de ações afirmativas. Todos os grandes escritórios de advocacia hoje estão se preocupando com promoção da igualdade racial. Muitos fazem isso por pressão dos clientes internacionais, mas alguns tiveram realmente iniciativa própria de refletir sobre a falta de sentido em ter um escritório só com sócios homens, brancos, heterossexuais, de classe alta. Pensaram: somos 5% da população brasileira e, portanto, não tem sentido ocuparmos todas as posições de comando.
BBC News Brasil – O que a sociedade brasileira ainda não entende sobre racismo e precisaria entender para uma mudança efetiva?
Moreira – A sociedade brasileira ainda não entende que o racismo não é apenas expressão pura de desprezo e ódio. É um sistema de dominação social que tem como propósito garantir vantagens competitivas para pessoas brancas. O racismo e o racismo recreativo têm o objetivo de produzir diferenciações de status cultural e material entre pessoas brancas e não brancas. O racismo se expressa para impedir que um grupo tenha o mesmo nível de respeitabilidade que o grupo dominante. No dia em que a sociedade ficar convencida de que pessoas negras podem desempenhar as mesmas funções sociais que pessoas brancas, brancos vão deixar de ter acesso exclusivo a certas funções sociais simplesmente por ser branco. E muitos não querem perder esse privilégio.