Feitoza explicou que a inteligência de Estado praticada pela Abin serve para “monitorar fatos ou situações com a finalidade de fornecer subsídios ao presidente da República nos assuntos de interesse nacional. Especialmente no caso da segurança do Estado. Não é o cidadão em si que é monitorado, mas o fato ou situação”.
Crespo ainda acrescentou que a Abin não é um órgão policial, tampouco tem função investigativa.
“Não é um órgão de investigação sobre ilícitos, sobre pensamentos políticos, sobre ideologia, ou sobre qualquer outra questão que possa levar à investigação individual de uma pessoa. A inteligência é conhecer o que está acontecendo, não significa investigar as pessoas”, complementou o advogado.
O programa chamado “FirstMile” permitia que fosse rastreado o paradeiro de alguém com os dados que eram transferidos do celular para torres de telecomunicações instaladas em diferentes regiões.
Com essas informações, era possível ver o histórico de deslocamentos e criar “alertas em tempo real” de movimentações em diferentes endereços.
Procurada pela reportagem, a Abin explicou que “o contrato 567/2018, de caráter sigiloso, teve início em 26 de dezembro de 2018 e foi encerrado em 8 de maio de 2021”. Desde 2021, o sistema desenvolvido pela empresa israelense Cognyte (ex-Verint) não está mais em uso.
Marcelo Crespo ressaltou que, “em tese, a Abin poderia fazer uso dessa ferramenta para monitorar ameaças internas ou externas à ordem constitucional”. Mesmo assim, o uso teria que ser pontual, com uma estratégia documentada e com o parecer da assessoria jurídica do órgão.
O especialista em direito digital explicou que a legislação que regula a estrutura da Agência deixa uma certa “abertura” para o que pode ser considerado ameaça interna ou externa, mas que isso não seria o suficiente para justificar o monitoramento de milhares de pessoas.
Denilson Feitoza defendeu uma regulamentação das ações de busca de informação e de operações de inteligência, mas reforçou que a legislação já trata desse assunto.
“A Constituição da República no Brasil somente permite a violação legal das comunicações telefônicas e de dados quando se trata de uma investigação criminal ou instrução penal, e mesmo assim depende de autorização judicial.”
Para Feitoza, os limites da Abin e de qualquer órgão que possa praticar atividade de inteligência de Estado não estão bem definidos na lei, que ele considera “genérica” demais. Para ele, a falta de detalhamento na lei também faz com que a inteligência fique enfraquecida.
“Direitos fundamentais de um lado e inteligência de Estado de outro são coisas absolutamente compatíveis, mas necessita de uma legislação adequada”, disse o presidente da Inasis.
Investigação e possível crime
Ambos acreditam que uma investigação sobre o caso deve ser capaz de apontar o que foi feito de forma legal ou ilegal. Os registros de quais agentes acessaram a ferramenta e o que fizeram com ela não podem ser apagados, o que permite auditagem.
O Ministério Público de Contas fez um pedido por meio do procurador Lucas Rocha Furtado para que o Tribunal de Contas da União (TCU) apure o caso. O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, também afirmou que a Polícia Federal (PF) vai investigar a situação.
Tanto Crespo como Feitoza concordam que, para falar em possíveis punições, primeiro é preciso entender o que ocorreu exatamente.
“A aquisição da ferramenta e a utilização por si só não configuram um crime. Mas a gente pode ter um desvio de finalidade, um desvio de função, uma infração ética e administrativa de funcionários da Abin que atuaram na época”. Os servidores públicos poderiam sofrer punições administrativas ou até demissão.
No entanto, se for verificado que ocorreu algum crime, as punições seriam de acordo com a lei. Por isso, é preciso avaliar como as informações foram coletadas e o que foi feito com esses dados para poder distinguir qual crime teria sido cometido.
Denilson Feitoza ainda destacou o artigo 4 da Lei Geral de Proteção de Dados, “que estabelece que o Estado, mesmo atuando em segurança pública, defesa nacional, ou atividades de investigação e repressão de infrações penais, deve observar os princípios de proteção de dados pessoais”.
“A única maneira de determinar a legalidade ou não dessa ferramenta seria por meio dos órgãos de controle”, disse Feitoza.
A fiscalização e controle da Agência Brasileira de Inteligência são feitos pela Comissão Mista de Controle da Atividade de Inteligência (CCAI) do Congresso Nacional. Além dela, o Ministério Público Federal (MPF), a Polícia Federal, o Tribunal de Contas da União, e o Ministério Público de Contas também são órgãos de controle.
Crespo também disse que é preciso verificar se outras autoridades públicas tinham conhecimento do que estava sendo feito, pois elas estariam envolvidas também.
Na última quinta-feira (16), a Comissão de Relações Exteriores do Senado aprovou requerimento que pede informações do ministro da Casa Civil, Rui Costa, e do diretor-adjunto Abin, Alessandro Moretti, sobre um programa secreto da agência de monitoramento ilegal da localização de pessoas através do celular.
O presidente da comissão, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), disse que um dos problemas da Abin seria ainda guardar resquícios de visões de mundo que remetem ao período da ditadura militar. O senador lamenta que parte da atividade se dê de forma “semiclandestina”, e que também é preciso averiguar as falhas da Abin no descontrole que gerou as invasões às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro.
Outra comissão do Senado também se movimenta sobre o assunto. A Comissão de Segurança Pública analisará na terça-feira (21) requerimento para que o ex-diretor da Abin e atual deputado federal Delegado Ramagem (PL-RJ) prestem esclarecimentos sobre o uso de um sistema secreto de monitoramento de pessoas pelo órgão de inteligência durante o governo Bolsonaro.