Caso Kiss: condenação, prisão e a atuação do STF
Por Marcelo Lemos Dornelles
Uma das maiores tragédias ocorridas no nosso país, o incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria, que resultou na morte de 242 jovens e em ferimentos em mais de 600, após vários incidentes processuais, chegou ao desfecho no 1.º grau de jurisdição, com o julgamento e a condenação dos quatro acusados pelo tribunal do júri de Porto Alegre. A par de todo o intenso sofrimento das famílias, vítimas e da sociedade, neste momento vou me ater somente à questão jurídica.
Durante o julgamento, que durou nove dias ininterruptos, houve o reconhecimento da prática de crime doloso contra a vida pelo tribunal competente. No caso, o tribunal popular. A Constituição federal assegura que o julgamento destes crimes será procedido pela sociedade. E mais, diz que esses julgamentos serão “soberanos”. Significa dizer que eles não poderão ter sua decisão de mérito modificada pelos outros tribunais, que funcionam como espécie de cortes de cassação.
Em 2019, para atender ao princípio constitucional da segurança, houve alteração no artigo 492 do Código de Processo Penal, que passou a prever a possibilidade de prisão imediata nas condenações por homicídio, quando a pena aplicada for igual ou superior a 15 anos. E que os recursos daí decorrentes não terão efeito suspensivo. Trata-se de uma das mudanças alcançadas pelo chamado Pacote Anticrime (Lei n.º 13.964/19), aprovado pelo Congresso Nacional. Sendo a referida alteração uma norma de caráter processual, pode ser aplicada desde logo. E foi o que ocorreu na decisão do juiz presidente do tribunal do júri.
Porém, ainda durante a leitura da sentença, num habeas corpus, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul concedeu liminar suspendendo a prisão, e os réus condenados se livraram soltos. Imediatamente, sem suprimir qualquer instância, por envolver matéria constitucional, com base na Lei n.º 8.437/92, ingressamos no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a suspensão dessa liminar e obtivemos êxito, em decisão do presidente ministro Luiz Fux. Pela disposição legal, essa decisão vigorará até o trânsito em julgado da decisão de mérito na ação principal.
Ao assim decidir, o ministro Luiz Fux reconheceu a presença, no caso concreto, da excepcionalidade que justifica a suspensão determinada, conforme entendimento anteriormente já firmado pelo Supremo Tribunal Federal sobre o tema, pelo grave comprometimento da ordem e da segurança pública na manutenção da decisão impugnada. Mas fez mais: afirmou que o processo penal brasileiro também deve proteger os interesses das vítimas, o que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) diversas vezes afirmou não acontecer na realidade brasileira (exemplificativamente, vide os casos Maria da Penha Maia Fernandes versus Brasil e Favela Nova Brasília versus Brasil).
Destacou a decisão que, “uma vez atestada a responsabilidade penal dos réus pelo tribunal do júri, deve prevalecer a soberania de seu veredicto, nos termos do artigo 5.º, XXXVIII, ‘c’, da Constituição federal, com a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados”.
Por outro lado, a sua decisão igualmente seguiu a orientação da Corte Interamericana de Direitos Humanos no que diz respeito ao combate à impunidade, o que se faz não só com a realização da devida investigação, persecução, processamento e condenação, senão também com a captura dos responsáveis pelas violações dos direitos protegidos pela Convenção Americana dos Direitos Humanos (exemplificativamente, vide o caso Ivcher Bronstein versus Peru, § 186, sentença de 6 de fevereiro de 2001; o caso Bámaca Velásquez versus Guatemala, § 211, sentença de 25 de novembro de 2000; e o caso do Tribunal Constitucional versus Peru, § 123, sentença de 31 de janeiro de 2001).
Na sequência, mais dois habeas corpus impetrados pelos condenados foram negados no STF, desta feita pelo ministro Dias Toffoli, consolidando essa tese jurídica na mais alta Corte judicial, que é quem tem competência para decidir a matéria constitucional.
Ao apontar situações penais em que a suspensão de liminar foi utilizada no STF, frisou o ministro Toffoli que “é importante que fique registrado que em nada inovou o presidente da Corte ao reconhecer o cabimento do pedido, que está em absoluta conformidade com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”.
Sendo assim, diante dos fatos aqui narrados, mesmo que resumidamente, justifico e reitero minha crença de que a remessa da questão pelas defesas à Corte Interamericana de Direitos Humanos é totalmente indevida.
Além de afrontar o prestígio da Suprema Corte brasileira, também peca por a referida CIDH se pautar pelo princípio da subsidiariedade, não se admitindo sua atuação como instância recursal, nem quando ainda não esgotados todos os meios disponíveis no âmbito do direto local. Ressalta-se, por oportuno, que ainda tramitam ao menos três agravos regimentais opostos pelos condenados contra a decisão que manteve a sua prisão.
Por fim, caberá ao Supremo Tribunal Federal, como sempre, a interpretação final sobre a correta aplicação dos princípios constitucionais. E o Ministério Público brasileiro a respeitará.
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PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL