Cientistas na PB têm pesquisas interrompidas com sequência de cortes de financiamento: ‘muitos alunos desistem’
Cientistas da Paraíba já vinham sofrendo com projetos interrompidos pela sequência de cortes de financiamento de pesquisas nos últimos anos. Com a nova decisão do presidente Jair Bolsonaro (PL) de vetar recursos do Orçamento 2022 para a área da pesquisa científica – justamente em 24 de janeiro, data proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) como o Dia Internacional da Educação – a perspectiva de estudantes e pesquisadores não é de melhora.
Quando o músico Matteo Ciacchi entrou no doutorado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), no começo de 2020, ele já sabia que o longo caminho a ser traçado na pesquisa seria sem bolsa de estudos. Movido pelo desejo de fazer um bom trabalho, ele topou continuar o estudo iniciado no mestrado, mesmo com muita dificuldade. “São várias coisas que você tem que ir fazendo ao longo da pesquisa, se você não tem bolsa, você fica de mãos atadas”, relata.
A situação de Matteo é apenas umas das muitas encontradas por estudantes de universidades públicas na Paraíba e no Brasil, e diante dos vetos estabelecidos para pesquisas pelo presidente Jair Bolsonaro no Orçamento de 2022, o cenário deste ano não deve ser diferente para quem depende do fomento.
Foi um um corte de R$ 739,9 milhões somente no Ministério da Educação, onde a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível superior (Capes) é veiculada.
Desde que a portaria n° 34 da Capes foi publicada em 2020, cerca de 346 bolsas de pós-graduação da UFPB, 26% do total de bolsas mantidas na instituição de ensino, foram cortadas.
Conforme dados da própria instituição, em 2019 a universidade mantinha 1.682 bolsas de mestrado e doutorado. Esse número mudou para 980 em 2020, após a portaria, e fechou 2021 com apenas 949 bolsas — um saldo negativo de 673 pesquisas interrompidas ou prejudicadas por falta de verbas.
Matteo mantém sua pesquisa sobre improvisação livre para descobrir e catalogar as origens da ideia de vanguarda na música da Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte, nos anos 60 e 70.
Segundo ele, o programa de pós-graduação em música da UFPB produz muito e bem. Por conta das boas avaliações, um dos fatos que se orgulhavam neste bloco da universidade era que, via de regra, quem entrava no programa de mestrado ou doutorado já entrava com bolsa.
Porém, no primeiro ano do governo Bolsonaro, cortes de verba atingiram bastante a pós-graduação na área e cada estudante que apresentava seu projeto passou a ter a verba recolhida pelo Ministério da Educação, em vez de repassar a bolsa para outro aluno.
O pró-reitor de pós-graduação da UFPB, Fernando Perazzo, explica que a queda no número de bolsas observado a partir de 2020 é relacionado a uma política de contigenciamento financeiro de recursos da Capes, na qual é levado em consideração o conceito dos cursos, tempo médio de conclusão e IDHM, prejudicando desta maneira a manutenção de bolsas permanentes e elevando o número de bolsas empréstimos. Desta maneira, os programas de conceitos 3 e 4 foram mais prejudicados que os de conceito 5, 6 e 7.
Sem ciência não há avanço: a perda é coletiva
Sem recursos, tem sido mais comum no Brasil a chamada ‘fuga de cérebros’, que se trata da evasão em massa de cientistas que, ao perceberem no país um solo infértil para o encaminhamento de suas pesquisas, buscam fomento em outros países. Deixando, assim, de contribuir para o desenvolvimento nacional, ainda que não por vontade própria.
Para os que ficam, há um caminho de limitações recorrentes. Quem tem visto de frente a face empobrecida da ciência feita no Brasil é a pesquisadora Monica Carvalho, coordenadora da Pós-Graduação em Energias Renováveis da UFPB. Com linhas de pesquisa que incluem termodinâmica, aproveitamento da energia e avaliações ambientais, os últimos anos têm sido marcados por uma sequência de cortes que enfraquecem os resultados de seus trabalhos.
Monica desenvolve pesquisas na universidade paraibana desde 2013 e alçou altos voos em 2021, integrando o Top 3 de autores de publicações científicas do Brasil em contribuições importantes para o desenvolvimento sustentável, estabelecidas pela Organização das Nações Unidas (ONU), no período 2017-2020.
“Fiquei feliz com o reconhecimento, mas estou preocupada com os contínuos cortes no orçamento da educação e com os impactos na continuidade das pesquisas científicas no Brasil”, desabafou a cientista.
Para Monica, os cortes mais severos em financiamento começaram em 2018. Ela submeteu seu projeto ao edital universal do CNPq, e mesmo apresentando mérito técnico-científico, não houve a concessão do auxílio, por corte nos recursos.
A Chamada Universal é o edital mais tradicional e democrático da agência, especialmente importante para jovens pesquisadores em início de carreira.
Monica se une, assim, a um coro de pesquisadores ouvidos pela reportagem do g1, que apesar de terem decidido não dar entrevista, reclamaram do fato do edital universal não ter sido aberto entre 2018 e 2020, fomento que costumava ser anual.
Em 2021, Monica Carvalho integrou uma equipe composta por oito pesquisadores para enviar uma nova proposta para o edital universal. Mesmo com registro formal de um desempenho excelente, o grupo ficou de fora dos recursos disponíveis. Mais uma vez devido ao corte no orçamento. A pesquisadora contou que o mesmo aconteceu com outro projeto seu.
A pesquisadora explicou quais os impactos coletivos de uma ciência danificada por reduções recorrentes de subsídios e de que forma o enfraquecimento de pesquisas como as dela afeta a comunidade.
“Os impactos desses cortes vão desde a falta de recursos para compra de softwares até a falta de alunos para desenvolver as pesquisas, por falta de bolsas. No caso da compra de software, posso citar minhas pesquisas sobre avaliações ambientais, que serão inviabilizadas devido à falta de recursos para renovação de licença, imagina então a manutenção de um laboratório”, contextualiza a cientista.
Monica trabalha com pesquisas que combinam a análise de entendimento energético e ambiental. Seus trabalhos atuais visam o desenvolvimento de uma espécie de etiqueta ambiental. No mercado, já são conhecidas as etiquetas energéticas que vão de ‘A a E’, e demonstram a eficiência dos produtos enquanto mais ou menos econômicos.
“A educação nas universidades pode modificar atitudes e comportamentos no sentido de uma consciência ambiental e de uma responsabilidade ética”, acredita ela.
A pesquisa de Monica Carvalho vai além e busca analisar o quantitativo de emissões de carbono dos produtos, definindo assim quais os mais nocivos ao meio ambiente. Esse tipo de ciência visa incentivar uma reflexão sobre os modos de consumo da sociedade e buscar difundir formas mais sustentáveis de utilizar os produtos do dia a dia, com foco na lida de problemas graves, como o caso das mudanças climáticas. São pesquisas como essas que têm sido prejudicadas pelos cortes.
“Eu não poder fazer essas pesquisas, junto com meus colegas, pela falta de software vai dar um baque grande nas pesquisas científicas do Brasil. É uma ferramenta muito importante, e dependemos de equipamento. Sem pesquisa não há nenhuma possibilidade de um país prosperar econômica, social e ambientalmente“, finaliza a cientista da UFPB.
Assim como para ela, em relação à pós-graduação, a redução de bolsas de mestrado e doutorado tem impossibilitado a dedicação exclusiva dos alunos. O fomento é uma forma de aumentar o número de dissertações defendidas. Há, segundo os pesquisadores, uma tendência a maior quantidade e qualidade de produção acadêmico-científica gerada pelos alunos que foram apoiados com bolsas durante o desenvolvimento dos estudos de pós-graduação.
Perda histórica
Em 2021, o impacto das reduções de fomento às pesquisas no Brasil alcançou um patamar histórico. Além da Capes, orçamento destinado ao Centro Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), principal órgão do país, também sofreu corte e foi o menor do século XXI.
A redução aconteceu em meio ao segundo ano de pandemia da Covid-19, com o desenvolvimento de pesquisas para monitoramento e produção de vacinas contra a doença.
Para o ano passado, o CNPq teve R$ 1,21 bilhão de orçamento. Esse valor é quase metade do que esteve disponível em 2000, quando foram destinados R$ 2,35 bilhões, segundo levantamento feito pelo jornal O Globo no Sistema Integrado de Operações (Siop), do Governo Federal. No entanto, a quantidade de alunos na pós-graduação duplicou no mesmo período: passou de 162 mil para 320 mil. Em 2013, ano com o maior investimento do século, o valor chegou a R$ 3,13 bilhões.
O CNPq teve seu início em 1951 e é um órgão vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. A proposta do Centro é fomentar a pesquisa em ciência, tecnologia e inovação, além de incentivar a formação de pesquisadores nas diversas áreas de conhecimento. O órgão publica editais para repasse de verba a projetos científicos do Brasil, além de organizar a distribuição de bolsas de pesquisa para pós-graduandos.
Entre os anos de 2011 e 2020, a quantidade de bolsas ofertadas pelo CNPq caiu em quase 50%, de 2.445 para 1.221. No mestrado, a redução foi de 32%, saindo de 17.328 para 11.824; no doutorado, de 20%, quando passou de 13.386 para 10.738.
Quanto vale uma pós-graduação no Brasil?
A queda do fomento à pesquisa não é o único entrave dos cientistas brasileiros. Desde 2013, outra problemática é a falta de reajuste nos valores das bolsas. Hoje, são distribuídos auxílios no valor de R$ 1.500 para mestrado e R$ 2.200 para doutorado.
O auxílio está bem aquém do que deveria ser pago, segundo levantamento feito em 2020 pela Associação Nacional de Pós-graduandos (ANPG). O órgão aponta que há uma desvalorização das bolsas de mestrado em 170% e de doutorado em 306%. Com as correções monetárias e inflacionárias, elas deveriam ser de R$ 3.555,35 e R$ 5.437,61, respectivamente.
A UFPB possui departamentos cujo impacto dos cortes reduziu, pela metade, a eficiência das pesquisas realizadas. É o caso do Programa de Pós-Graduação e Engenharia Elétrica, coordenado pelo professor Fabiano Salvadori. Segundo ele, nos últimos anos, o departamento só tem vivenciado quedas. Não há mais, no momento, bolsas do Programa Nacional de Pós Doutorado, da Capes. Das duas que se tinha, uma foi cancelada em 2019 e a restante em 2021.
Das nove bolsas de mestrado que o departamento tinha em 2019, duas delas foram canceladas em 2020 e mais duas em 2021. Para o professor Fabiano, as perdas para o programa são significativas.
“Sem bolsa muitos alunos desistem, interrompendo projetos de pesquisas. Outros que continuam dedicam menos tempo à sua pesquisa, o que também ocasiona prejuízos”, relata o coordenador.
O sonho de Matteo, músico que teve o doutorado afetado pelo corte de bolsas, é mostrar através da sua pesquisa que se pode falar sobre música de vanguarda sem que seja de música de fora, que se pode explorar teoricamente sem depender de teorias estrangeiras.
Para isso, ele conta com bastante pesquisa bibliográfica, de campo, entrevistas e visitas. Tudo isso exige recurso: de digitalização de arquivos antigos, de deslocamento para museus, viagens para entrar em contato com possíveis fontes — coisas que ele vinha fazendo tirando de seu próprio bolso com a renda de músico que foi bastante reduzida e prejudicada durante a pandemia. A falta de bolsa prejudica inclusive inscrições em editais e congressos.
“Você submete o trabalho, se o trabalho for aprovado você tem que pagar a anuidade e dar um ponto e mais uma taxa de inscrição no evento. Juntando tudo, dá uns R$ 200. Para quem está com bolsa, tudo bem. Isso é uma mixaria, né. Para quem está sem bolsa… Por exemplo, eu apresentei um trabalho na ANNPOM (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música) de 2020 só que eu não paguei anuidade, nem inscrição no evento. Então, o meu trabalho não está lá nos anais do evento”, relata.
Depois de um ano no doutorado sem bolsas, ele conseguiu financiamento através da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Paraíba (Fapesq).
Em abril de 2021, a UFPB assinou um acordo de cooperação técnica com a fundação para concessão de apoio financeiro a programas de pós-graduação da universidade. Além de 40 bolsas para estudantes, os recursos incluíam verba para custeio das atividades de pesquisa.
O apoio financeiro é parte de um programa de desenvolvimento nacional implementado pela Capes. Dos recursos disponibilizados para a UFPB, cerca de R$ 2 milhões foram destinados para a concessão de 35 bolsas de mestrado e cinco bolsas de doutorado, distribuídas entre os oito programas.
Apesar da situação do estudante ter mudado, ele afirma que esse tipo de política não melhora a desfasagem na educação superior brasileira e é apenas um paliativo.
“Eu acho que tem tudo a ver com os ‘chocolatinhos de Weintraub’ porque é o que está rolando assim né? Eles realmente conferenciaram, recolheram, cortaram bolsa para lá e para cá. Ficaram com um monte de dinheiro em caixa e aí vão liberando tudo de uma vez assim, né? Meio que tipo é peguem aí e saiam correndo. Quem pegar, pegou”, relata.
‘Chocolatinhos de Weintraub’
Quando o bloqueio no orçamento de todas as universidades e institutos federais foi anunciado, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, ao lado do presidente Jair Bolsonaro em uma transmissão online, usou chocolates para explicar o corte de verbas.
“A gente tá pedindo simplesmente três chocolatinhos desses 100 chocolates, três chocolatinhos e meio, três chocolatinhos e meio. A gente não está falando para a pessoa que a gente vai cortar, não está cortado. Deixa para comer depois de setembro, é só isso o que a gente está pedindo. Isso é segurar um pouco”, disse o ministro.
O bloqueio atingiu 3,4% do orçamento total das universidades federais e durante a transmissão, Weintraub colocou sobre a mesa 100 chocolates e separou três e meio.
Em seguida, Weintraub se dirigiu ao presidente da República e indagou: “Eu o pergunto, presidente, o senhor já passou por uma situação dessa, de ter um imprevisto, uma dificuldade na vida? Que falou assim: ‘Segura um pouco?’ Se alguém falasse assim: ‘Três chocolatinhos e meio. Três e meio por cento. Dos 100, três e meio segura’. Porque o salário está integralmente preservado e pago no dia. […] Ficam espalhando que a gente está fechando tudo”.
Em 2022 panorama não é diferente
Ao sancionar o Orçamento de 2022, o presidente Jair Bolsonaro vetou recursos que haviam sido aprovados para as áreas de pesquisas científicas. Apenas no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações os cortes chegaram a marca de R$ 73 milhões.
- Pesquisa, desenvolvimento científico, difusão do conhecimento e popularização da ciência nas unidades de pesquisa do Ministério da Ciência e Tecnologia. Valor vetado: R$ 429 mil.
- Apoio a projetos de tecnologias aplicadas, tecnologias sociais e extensão tecnológica articulados às políticas públicas de inovação e desenvolvimento sustentável do Brasil. Valores vetados: R$ 25,9 milhões + R$ 35 milhões.
- Fomento à pesquisa e desenvolvimento voltados à inovação, a tecnologias digitais e ao processo produtivo nacional. Valores vetados: R$ 1,1 milhão + R$ 608 mil.
- Fomento a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico nacional. Valor vetado: R$ 859 mil.
- Formação, capacitação e fixação de recursos humanos para o desenvolvimento científico. Valor vetado: R$ 8,5 milhões.
- Apoio à consolidação, reestruturação e modernização das instituições federais de ensino superior. Valor vetado: R$ 34,3 mil.
- Fomento às ações de graduação, pós-graduação, ensino, pesquisa e extensão – nacional. Valor vetado: R$ 4,2 milhões.