Como era a fraude nas Americanas, segundo a investigação da PF

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© Divulgação/Americanas SA

Dados coletados pela PF (Polícia Federal) mostram que a antiga diretoria da Lojas Americanas discutia abertamente as fraudes contábeis que resultaram no rombo de R$ 20 bilhões.

A direção mantinha uma planilha com os dados reais, para consumo interno, e outra com os dados fraudados, era apresentada ao mercado e ao conselho de administração, mostra relatório.

Miguel Gutierrez, ex-CEO da empresa, e ex-executivos foram alvos na quinta-feira (27) da operação Disclosure, da PF, que investiga a fraude. Gutierrez, que tem também cidadania espanhola, e a ex-diretora Anna Saicali deixaram o país e são alvos de pedido de prisão —foram incluídos na difusão vermelha da Interpol.

Contatada, a assessoria de Saicali não se pronunciou. A defesa de Gutierrez afirma que ele nega ter cometido fraudes.

A operação desta quinta não envolve o trio de bilionários sócios de referência da empresa, Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles.

Um dos exemplos de como a direção sabia das irregularidades é um arquivo denominado “A vida como ela é”. Ele mostra o resultado antes de impostos do 1º trimestre de 2021, com prejuízo de R$ 209 milhões. O divulgado ao mercado para o período, no entanto, foi positivo em R$ 129,4 milhões.

Em um e-mail de dezembro de 2020, o ex-executivo Timotheo Barros pede “os números reais” de novembro para que o balanço do ano fosse fechado a Flavia Carneiro —cuja delação premiada foi uma das que deram subsídios ao caso.

A diretoria tinha dois documentos comparando os resultados. O real chamado “Visão Interna” e o fictício denominado “Visão Conselho”.

A “Visão Interna” de 2021 tem um resultado negativo de R$ 733 milhões enquanto a “Visão Conselho” apresenta um resultado positivo de R$ 2,885 bilhões, que foi apresentado ao mercado.

De acordo com a PF, os autos do inquérito tem centenas de e-mails com trocas como essa. O inquérito contém ainda trocas de mensagens por Whatsapp entre membros da antiga diretoria.

Em uma troca de mensagens entre Carneiro e Carlos Padilha, ex-diretor financeiro, o último pede mudanças nos resultados da empresa.

“Fabien [Picavet, diretor-executivo de Relações com o Investidor da LASA] me retornou dizendo que não está bom, Margem, resultado, financeiro e lucro. Ele te falou isso? A ideia de vcs sentarem é pra ajudar”, escreveu.

Em outra conversa, denominada “Auditoria 2016”, integrantes da direção discutiam como conseguir cartas dos bancos para comprovar os números apresentados nos balanços públicos das empresas, documento necessário para que os auditores independentes avalizassem as contas das Americanas.

Em certo momento, a demora em conseguir as cartas é considerada desesperadora pelos executivos. O problema principal era com o documento do Itaú. Após uma versão ser apresentada pelo banco, o ex-executivo Fabio Abrate diz que “o assunto azedou muito. Podemos ter efeitos colaterais”.

Dias depois, o problema persiste. “Itaú está com uma postura péssima”, escreve Abrate. Os diretores falam então em fazer pressão na auditoria independente. “Uma rezadinha ajuda”, complementou Padilha. Por fim eles conseguem o aval da auditoria e todos comemoram no grupo.

Os balanços eram fraudados tendo em mente a expectativa de mercado para a Americanas. Um arquivo chamado “verdes e vermelhos” comparava os relatórios de instituições financeiras sobre a varejista com os resultados da empresa. Os valores esperados próximos da realidade estavam em verde enquanto os que precisavam ser ajustados estavam em vermelho.

Quando o documento previa um percentual de crescimento, a diretoria alterava artificialmente o resultado. Com isso, evitava frustrar o mercado, manipulando o preço da ação da companhia na Bolsa de Valores.

A PF aponta ainda que a diretoria recebia mês a mês os resultados reais da varejista, tomava conhecimento da maquiagem dos números e escolhia um resultado fictício para ser divulgado.

As provas foram obtidas a partir da delação premiada de Flavia Carneiro e de Marcelo Nunes, de documentos entregues por eles e da quebra de sigilos dos envolvidos.

De acordo com Carneiro, a fraude acontecia desde pelo menos 2007.

São investigados os crimes de manipulação de mercado, uso de informação privilegiada, associação criminosa e lavagem de dinheiro. Em caso de condenação, as penas chegam a até 26 anos de reclusão. As medidas da operação policial desta quinta foram autorizadas pela 10ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro.

A investigação mostrou que as irregularidades visavam alcançar metas financeiras internas e fomentar bonificações. Os investigados agiam para manipular e elevar de forma ilícita o valor de mercado das ações da empresa.

11 ex-executivos da empresa venderam mais de R$ 250 milhões a partir de julho de 2022, quando Gutierrez foi informado que Sergio Rial assumiria seu lugar no comando da empresa. No final de julho de 2022, cada ação valia R$ 14. Na quinta-feira (27), o valor é de R$ 0,40.

A informação é utilizada pelos investigadores para enquadrar Gutierrez e outros investigados no crime de uso de informação privilegiada.

O crime de uso de informação privilegiada, também chamado de insider trading, se dá quando a pessoa se aproveita de uma informação relevante, ainda não divulgada ao mercado, e à qual somente tem acesso devido ao cargo ou posição para obter algum tipo de lucro.

ENTENDA COMO OS DADOS CONTÁBEIS DAS AMERICANAS ERAM FRAUDADOS

1. Registro de cartas de VPCs (Verba de Propaganda Cooperada) fictícias

As Verbas de Propaganda Cooperada (VPC) são uma ferramenta legítima utilizada no setor de varejo. Envolve a concessão de créditos por parte dos fornecedores aos varejistas por motivos comerciais variados. Por exemplo, as cartas de VPC são pagas para a empresa incluir produtos em materiais promocionais de lojas ou websites.

As VPCs são como um crédito para o comerciante e, como explica a PF em seu relatório, podem ser utilizadas para abater dívidas com o fornecedor em questão, culminando em uma melhora nos resultados financeiros da empresa.

Um das delações do caso Americanas resume como se dava a fraude envolvendo VPC. “Criavam-se lançamentos contábeis fraudulentos, referentes a VPC inexistentes. O registro contábil era efetuado sem qualquer documentação de suporte. Documentos falsos para amparar esses lançamentos contábeis seriam criados, quando e se necessários, apenas para atender eventual demanda de comprovantes pela auditoria externa”, afirmou em depoimento.

Na prática, relatou a delatora Flavia Carneiro, o resultado contábil era apresentado com o total de cartas de VPC “A” (reais), mas, para melhorar os números, eram criadas de forma fraudulenta novas cartas contabilizadas como “arrecadação complementar” —segundo a PF, um eufemismo para a fraude, fazendo com que resultados atingissem os números esperados pelo mercado.

O delator Marcelo Nunes relatou aos investigadores que chegou a fraudar e-mails das empresas fornecedoras para criar os documentos necessários para validar as cartas de VPC.

Segundo relatório sobre as investigações, quem fazia as alterações nas cartas de VPC era o suporte comercial, um funcionário do time de Nunes. “Essa prática de alteração das cartas de VPC consistia em pegar uma carta de VPC verdadeira e, com base nessa verdadeira, eram modificadas as datas e os valores, mantendo os dados cadastrais.”

2. Fraude mediante risco sacado

Também comum no varejo, a operação de Risco Sacado é uma estratégia financeira que envolve a participação de instituições bancárias na liquidação das obrigações da varejista para com seus fornecedores.

“Este arranjo permite que o prazo para desembolso de recursos financeiros pela varejista seja postergado, otimizando assim sua gestão de caixa. À medida que se aproxima a data de vencimento de uma determinada obrigação financeira documentada por nota fiscal, a varejista estabelece negociações com um banco para que este efetue o pagamento diretamente ao fornecedor”, afirma a PF.

Na prática, o banco paga a dívida com os fornecedores e depois a empresa, ao final do contrato, paga essa dívida com o banco.

No caso das Americanas, segundo o depoimento de delatores e provas coletadas, os valores ou parte dos valores de operações de Risco Sacado não eram informados ao comitê financeiro e assim não constavam no balanço.

Elas também não constavam nas cartas de circularização que os bancos com os quais a empresa tinha dívida enviavam para a auditoria.

“As cartas de circularização são documentos por meio do qual a equipe de auditoria faz contato com terceiros, que sejam fontes de informações externas à entidade, para que confirmem a ocorrência de fatos contábeis ou seus respectivos saldos registrados”, diz a PF.

Emails e mensagens coletadas pelos investigadores mostram que a direção do banco chegou a cooptar funcionários dos bancos para que eles alterassem as cartas de circularização, evitando que a fraude fosse descoberta pelas auditorias.

3. Outras fraudes (fraudes que melhoravam o resultado e fraudes sem impacto contábil)

A PF cita outros dois tipos de soluções financeiras que não foram “discriminadas nas demonstrações financeiras e não informadas nas cartas de circularização dos bancos para as auditorias externas.”

“Cartão de crédito”

Parecida com o risco sacado, a operação previa um acordo com bancos que pagavam aos fornecedores os valores integrais das notas fiscais, e, em aproximadamente 30 dias, a varejista pagava à instituição financeira o valor despendido, acrescido do custo financeiro das operações.

“Essa operação cartão de crédito gerava essa dívida de curto prazo com o banco que não era divulgada e que, na prática, funcionava quase igual ao Risco Sacado. A diferença é que a operação cartão de crédito era de curtíssimo prazo (aproximadamente 30 dias) e a operação Risco Sacado tinha prazo maior”, disse em depoimento o delator Marcelo Nunes.

“Antecipação de VPC”

Segundo o delator Marcelo Nunes, esse modelo de operação surgiu em 2022 e, basicamente, consistia na antecipação de VPC (Verba de Propaganda Cooperada) “também considerando o VPC que sequer existia”.

“Na prática ia uma relação de cartas para o banco, e o banco antecipava essa relação de créditos para a empresa, com a contrapartida de que a empresa fizesse uma aplicação em torno de 70% a 100% daquele valor antecipado”, disse o delator.

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