‘Crianças pisavam em restos humanos’; leia relato inédito sobre a Guerra do Iraque
por SÉRGIO DÁVILLA E JUCA VARELLA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na quarta-feira 20 de março de 2003, às 5h35 locais (23h35 da terça-feira 19 de março em Brasília), a coalizão liderada pelos Estados Unidos começou a bombardear Bagdá, no que marcaria o início da Guerra do Iraque. Passados 20 anos, o saldo da invasão é incerto.
O ditador Saddam Hussein fugiu, foi capturado, julgado e executado. As armas de destruição em massa, pretexto inicial do governo George W. Bush (2001-2009) para a operação, nunca foram encontradas.
Ao longo da investida militar, cerca de 200 mil civis foram mortos e milhões tiveram de se refugiar em outros países. No vácuo de poder que sucedeu a invasão, o Estado Islâmico experimentou seu crescimento, auge e queda, deixando um rastro de sangue.
A região, historicamente instável, permanece em tumulto, com tensão entre Iraque, Irã e Síria. Internamente, xiitas, sunitas e curdos, que viviam a paz forçada pela mão de ferro da ditadura, retomaram as escaramuças.
Naquela manhã e nas semanas seguintes, a Folha foi o único veículo brasileiro a ter repórteres acompanhando em Bagdá a guerra, que matou 117 jornalistas. Leia abaixo trecho inédito na imprensa do relato sobre aqueles dias.
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São 5h30 do dia 20, e tento tirar um cochilo depois de termos finalmente conseguido nos instalar no Palestine.
Não foi fácil. Ao chegarmos aqui, tivemos de literalmente ir pulando corpos e malas dos jornalistas que dormiam no piso, no saguão, nos corredores, onde fosse possível. Até três dias atrás, Bagdá contava com 2.000 repórteres estrangeiros. Nas últimas 24 horas, mais de 1.800 deixaram o país.
A maioria foi a pedido de suas empresas, caso das grandes emissoras de TV, que seguiram o conselho do Pentágono de retirar as equipes da “possível zona de combate”. Outros temiam pela segurança ou atendiam ao desejo das próprias famílias. Outros ainda partiam por motivos mais pedestres: o visto tinha vencido, e o governo não queria renová-lo.
Os 180 que ficaram fomos bater no Palestine em busca de quartos.
A possibilidade de arrumar vaga é diretamente proporcional ao tamanho do suborno, que deve ser entregue, escondido dentro do passaporte, a um dos funcionários (públicos) da recepção.
Demoramos para perceber esse código. A diária é de US$ 80 (cerca de US$ 130 hoje) e mesmo US$ 10 seriam muito para este hotel com fachada a imitar uma colmeia, que um dia foi da cadeia Meridien e que, desde que o governo o tomou no começo dos anos 90, só fez decair.
Trezentos dólares, uma dor de estômago e duas horas depois, chegamos ao quarto 1104, 11° andar, lado esquerdo de quem olha de frente o logo do hotel em que a letra “e” final de “Palestine” está quase despencando da fachada. São duas camas sobre um tapete sujo e puído, uma bancada com espelho, duas poltronas, um banheiro, uma banheira com ducha e um armário. Abrimos a água (que nega sua definição científica: tem aroma, cor e sabor). E a porta da minivaranda, que será nosso escritório pelas próximas semanas.
Isso porque só poderemos usar nossos equipamentos (que, oficialmente, não trouxemos) depois de escurecer, com raras exceções. O hotel todo é tomado por policiais secretos, que rondam as escadas e corredores e ficam sentados em grupos no saguão, fumando muito e tomando café. Fazem patrulha também no estacionamento, quando olham para os quartos para ver se alguém desobedece à regra de só utilizar telefone e conexão por satélite na sede do Ministério da Informação.
Nos próximos dias, graças à curiosidade de Juca Varella (que descobriu o lugar), guardaremos tudo no duto do ar condicionado. Parece feito sob encomenda, exatamente do tamanho do equipamento. Tão logo anoitece, abrimos o “escritório”: uma latinha de lixo virada ao contrário faz as vezes de cadeira, um criado-mudo funciona como mesa, e a conexão fica num parapeito, no limite entre conseguir sinal do satélite e não ser flagrada pelos policiais.
Agachados na varanda, escrevemos, editamos e mandamos textos e fotos. Quando dá, também navegamos um pouco pela internet e respondemos aos e-mails mais urgentes.
Além do esconderijo, somos obrigados a adotar outras medidas dignas de filme ruim de espionagem. Só nos referimos ao telefone e à conexão como “o bicho”, em português mesmo, porque percebemos que, toda vez que dizemos em público as palavras “satélite” e “telefone” (parecidas com suas equivalentes em inglês), alguém por perto levanta a sobrancelha e passa a nos seguir com os olhos. E Juca leva sempre o equipamento boi de piranha: uma máquina fotográfica digital mais antiga, para ser sacrificada em caso de apreensão.
Também combinamos uma batida específica na porta – três toques secos e espaçados, para nos distinguirmos das outras pessoas que tentam frequentar nosso quarto. Pelo menos uma vez por dia, recebemos visitas “inocentes” de nosso motorista, de nosso guia ou de algum funcionário do hotel – todos trabalhando para o Ministério da Informação, todos com obrigação de fazer relatórios diários sobre as atividades dos jornalistas.
“Acorda, Sérgio, que está começando!”
É Juca, já paramentado com capacete e colete à prova de balas e segurando a máquina na mão, numa imagem que depois nos valeria o apelido de Playmobil.
Antes, após termos esperado uma hora sem que nada acontecesse, combinamos um semirrevezamento. Pulo da cama para a varanda a tempo de ouvir o barulho do primeiro míssil, abafado pelas sirenes, que não param. Mais alguns minutos e a primeira leva de bombas – são 13 na mesma área – atinge um dos prédios do complexo presidencial de Saddam Hussein. Começa a guerra.
Depois, saberemos que a coalizão anglo-americana, usando informações de sua inteligência, tentava atingir uma reunião que Saddam supostamente teria com seu Alto-Comando, acompanhado dos dois filhos. Relatos posteriores afirmarão de tudo - desde que o ditador iraquiano realmente morreu nesse primeiro dia até que ele teria sido visto ao sair carregado para uma ambulância, muito ferido. Nada se confirmará.
Somos 180 jornalistas no hotel, e só Juca Varella e outro fotógrafo, da France Presse, conseguem flagrar aquela cena inicial, graças a um método simples: deixar a câmera apontada para um mesmo lugar. Juca escolhe um ponto, concentra-se nele e – clique – capta a imagem que em dez minutos estará em São Paulo e depois correrá o mundo.
Entre as emissoras de TV, não é diferente. Seis andares acima do nosso, o repórter Carlos Fino, da TV portuguesa RTP, se arruma enquanto o cinegrafista Nuno Patrício acerta a imagem: ambos estão ao vivo e pretendem noticiar que, uma hora e meia depois do ultimato, nada aconteceu.
Acabam sendo a única emissora do mundo a registrar o ponto zero desta guerra, que acontece ali, a metros de nossas varandas.
OS SONS DA GUERRA
Juca cuida das imagens da guerra, que tenho de colocar em palavras, mas são os sons o que mais nos impressiona. As cenas do primeiro bombardeio, registradas apenas por aquelas duas câmeras fotográficas, foram de certa forma tímidas para nós, que esperávamos o fim dos tempos.
Como a guerra começou às 5h35, o dia já estava claro, e a explosão da série de mísseis despejados na “janela de oportunidade” de que falou George W. Bush para pegar Saddam e seus filhos reunidos não causou o efeito visual esperado. Os mísseis, ao caírem, produziam um fogo pequeno, parecido com o que sai dos bicos das torres de petróleo, e tudo era logo engolido por uma fumaça preta.
(Depois, aliás, esse “ponto zero” da guerra entraria para a história por outro motivo. Não existia nenhum bunker de US$ 60 milhões em que Saddam e família estariam escondidos na hora da tal janela de oportunidade, diferentemente do que oficiais americanos disseram então. Ou, pelo menos, ninguém descobriu o abrigo até a conclusão deste texto.
O resultado foi que os 40 mísseis Tomahawk lançados caíram sobre construções normais. A um custo de dezenas de vidas civis e US$ 30 milhões.)
Mas o som produzido pelo bombardeio não deixa margem a engano; o que começou ali, a poucos metros de onde estamos, é uma guerra. Quem ou o que quer que tivesse estado embaixo daquelas bombas e mísseis não ficou para contar a história. Juca alerta para a grande diferença sonora entre os estouros. Aqui, é preciso ser onomatopaico.
O explosivo, quando atinge o alvo, faz algo parecido com BUM.
É prosaico, mas os quadrinistas e os contadores de história infantil tinham razão. Um som que, embora gravíssimo, altíssimo, é de curta duração. Na verdade, o que produz barulho é o ar que ele desloca. Muitos artefatos que caem próximos demais do Palestine nos jogam para trás na varanda na ida e chegam a quebrar vidros de quartos na volta, quando o ar deslocado encontra resistência e retorna à origem com intensidade menor, mas ainda grande.
Já o míssil faz BRUUUUUUUUM, som mais duradouro e mais apavorante. Lembra aquela série de estampidos dos rojões que o torcedor brasileiro estava acostumado a ouvir quando seu time entrava em campo. O ruído é parecido com outro muito comum neste conflito, o da artilharia antiaérea. Só que ela é bem mais intensa, por estar mais próxima de nós, geralmente no topo dos edifícios ao redor. A violência da artilharia em ação e a intensidade do som fazem você pensar que está trancado num banheiro e que alguém estourou ali os tais rojões do campo de futebol.
Logo nos familiarizamos com a rotina sonora. Começa com a sirene antiaérea, ligada sempre que algum míssil da coalizão anglo-americana é detectado no radar. É seguida pelo ruído da bateria antiaérea, que dá lugar ao barulho do motor do avião ou do míssil propriamente dito, e tudo termina na explosão, seguida de tremor e deslocamento de ar. Há alguns segundos de silêncio, em que a terra inteira parece estar se assentando.
Então, os alarmes dos carros disparam, os cães de rua começam a latir e correr desesperados rumo à margem do rio Tigre (para se esconder no matagal), as ambulâncias deixam os hospitais em direção ao local atingido, e (pelo menos perto de nós) uma mesquita invariavelmente solta uma gravação nos mesmos alto-falantes que convocam os fiéis às rezas diárias. Na fita, um imã de voz grossa canta: Allahu Akbar (“Deus é o maior”). Sempre a mesma rotina, seja o bombardeio de madrugada, como no começo da guerra, seja durante o dia, como na segunda fase.
Dias depois, vamos saber que o responsável pelo final da trilha sonora da guerra é o muezim Murtadha Mustafa al-Zaidi, de 30 anos, que cuida da mesquita 14 de Ramadã, localizada menos de duzentos metros à esquerda do Palestine e em frente à praça Firdos, que ficará famosa no dia da queda de Bagdá. O líder religioso diz que faz aquilo para acalmar os moradores da vizinhança e que não é difícil saber o momento certo de soltar a fita, pois também ele é acordado pelas bombas e, para saber a deixa, espera a mesma série de ruídos que nós.
VIVENDO SOB BOMBAS
Se para os brasileiros viver sob bombas é inconcebível, os bagdalis dão mostras de encará-las como os habitantes da costa japonesa encaram o tsumani: é ruim, mata muita gente, mas as pessoas têm de continuar levando a vida. A diferença fundamental –este é fenômeno natural, aquele é fenômeno da invasão anglo-americana– não parece afetar a reação dos iraquianos.
“Eu vendia bananas antes da guerra e vou continuar vendendo bananas depois da guerra”, diz o comerciante Hassan Ali, enquanto segura na mão um cacho de seu argumento. Como ele, o mercado popular volta a abrir aos poucos, os táxis deixam suas garagens, e as pessoas perdem o medo de sair às ruas. O povo está tristemente acostumado à situação, pois passou mais de dois terços das últimas duas décadas em conflito, seja com os vizinhos Irã e Kuwait, seja com os EUA e seus aliados, que vêm bombardeando o país desde a Guerra do Golfo.
É da resignação do povo que nos veio a ideia da cobertura da guerra do ponto de vista dos bombardeados. Julgamos que daí virão as melhores histórias, justamente do aspecto menos coberto pela imprensa internacional, especialmente a americana, mais preocupada com estratégias militares, sofisticação de armamentos e o “quem é quem” do regime. O “Diário de Bagdá”, seção diária sugerida e publicada pela Folha diariamente durante o conflito, seria uma consequência natural desta decisão.
Difícil mesmo é dormir. Combinamos que temos de estar sempre a cinco minutos de um lugar seguro –no caso, o fétido abrigo antiaéreo no segundo subsolo do Palestine, um cômodo de uns 60 metros quadrados, cheirando a mofo e cigarro, com 30 camas de solteiro, chão coberto de tapetes coloridos e duas pias.
O lugar é frequentado por funcionários do hotel e pelas mulheres e filhos dos espiões do Ministério da Informação. Estes usam de seus privilégios para trazer a família a uma área supostamente mais segura. De vez em quando, em madrugadas de bombardeio mais severo, alguns jornalistas se arriscam a passar a noite ali. Até agora, conseguimos evitar.
Mas a parte inicial do plano é colocada em prática quase todas as noites. Dormimos vestidos, muitas vezes de botas – e sem remorso de, assim, sujar as colchas, que não são trocadas faz pelo menos três meses.
Aqui, dormir de roupa é bom para a segurança e ótimo para a higiene.
Algumas vezes, vamos para a cama também com o capacete militar.
E quase sempre com o colete à prova de bala. É aí que mora o problema. Os coletes que compramos em Londres por US$ 2.500 cada um são item obrigatório em Bagdá, sendo usados por 9 em cada 10 jornalistas estrangeiros. Azuis, com um bolso específico para o celular e outro do tamanho de um bloco de repórter, trazem a qualificação 3, ou seja, seguram bala não só de revólver e pistola, mas também dos projéteis M80 (usados pelos Exércitos dos países-membros da Otan) e os fuzis M16 (usados pelos EUA) e AK-47 (onipresentes no Iraque).
Assim, estamos protegidos de muitos dos possíveis agressores deste conflito, graças a duas placas de cerâmica que cobrem nossos órgãos vitais tanto na frente quanto nas costas. O resto do colete só apara tiro de revólver e pistola, mas o conjunto todo é muito útil para nos livrar do maior causador de mortes nos hospitais que visitamos até agora: os estilhaços de bombas.
(É de uma lógica cruel: não há sobreviventes de bomba e míssil. Quando o armamento cai perto demais, a pessoa é pulverizada. Se um pouco mais distante, é carbonizada ou tem os ossos moídos. Assim, os chamados “feridos de bomba” são, na verdade, aqueles que não estavam próximos do alvo o suficiente para morrer, mas que receberam os estilhaços. São pedaços de metal incandescente, afiados como lâminas, que arrancam braços e pernas e penetram fundo no tronco como facas quentes em manteiga.)
As placas de cerâmica são o problema na hora de dormir: tiram a estabilidade na horizontal. Eis uma cena comum: são 2h, mandei meu último texto para São Paulo, e Juca transmitiu sua última foto. Se há luz, arrumamos as coisas para amanhã, quando o motorista nos acordará às 8h para andarmos pela cidade e arredores cada dia mais destruídos. Se há água e esta não se mostra barrenta e malcheirosa como sempre, escovamos os dentes, lavamos o rosto e vamos para a cama. Com a mesma roupa usada o dia inteiro, sapatos incluídos.
Deitados, tentamos nos equilibrar sobre os coletes. Lá fora, em geral a intervalos de 15 a 30 minutos, as bombas e os mísseis atingem alvos por toda a cidade, alguns próximos o bastante do hotel para chacoalhá-lo.
Juca começa a roncar, e eu consigo pegar no sono. Nem uma hora depois, outra bomba. Instintivamente, tento me levantar e virar de costas para a varanda. Mas, com o peso do colete e o desequilíbrio resultante, caio no chão. Isso acontece várias noites. Eu acordo, olho para cima, e lá está meu parceiro, rindo de meu enésimo tombo.
Ainda como parte do plano de segurança, deixamos preparada, ao alcance da mão, uma mochila com itens básicos, como chocolate, grãos e frutas secas, água potável e estojo de primeiros socorros preparado pela mulher de Juca, a pediatra Eliana Hiromi Mihara, com direito ao papel laminado contra hipotermia e ao Cipro, o antibiótico da Bayer que ganhou fama mundial após o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, quando alguns políticos e órgãos de comunicação americanos receberam cartas com esporos do antraz.
Como o resto do mundo, nós também acreditamos que Saddam Hussein tinha armas químicas e biológicas –afinal, não foi esse o principal motivo para George W. Bush ter invadido o Iraque? Foi também por isso que compramos em Londres duas máscaras antigás, as chamadas máscaras NBC, que nos protegeriam por seis horas a cada filtro contra resíduos nucleares, biológicos e químicos (donde a sigla em inglês). Nos primeiros dias, o temor de ataques dessa natureza era forte entre os jornalistas, que chegavam a carregar suas máscaras amarradas à cintura.
O fato de estarmos no quarto 1104 arranca um comentário preocupante de Auni al-Dairi, o funcionário da ex-embaixada brasileira: “Hummm, 11? Não sei, não… Não tinha nada mais próximo do solo?” Não tinha, e acordar, levantar, pegar a mochila de emergência, descer as escadarias com todo o equipamento e achar o abrigo leva pelo menos cinco minutos. Se o pior acontecer, sobreviveremos. A não ser que a bomba caia a menos de 500 metros.
O MESMO QUE ‘GUERRA PACÍFICA’
Se o bombardeio número zero é considerado discreto para os padrões americanos, o mesmo não se pode dizer da escalada que vem a seguir. Até o fim do conflito, saberemos depois, os EUA sozinhos realizarão mais de 13 mil investidas para lançar mísseis ou bombas no espaço aéreo iraquiano, a maior parte delas tendo algum lugar de Bagdá como alvo.
Embora não tenham sido despejadas nem a Moab (“a mãe de todas as bombas”, como mostra a sigla em inglês, pesando quase dez toneladas) nem sua irmã menor, a Cortadora de Margaridas (que, com quase sete toneladas, ganhou esse nome pelas clareiras que abre nas florestas), as Treme-terra e suas companheiras cuidam de fazer um bom estrago.
As Treme-terra são bombas de duas toneladas cujo objetivo é entrar fundo no solo e só então detonar, conseguindo tanto penetrar bunkers quanto derrubar prédios a partir dos alicerces. Vamos visitar o buraco no asfalto feito por uma delas, que caiu no lugar errado e não explodiu, no acesso a uma das pontes que atravessam o Tigre. Só o impacto abriu uma cratera de vinte metros de diâmetro por dez de profundidade.
Vamos também visitar dez hospitais que recebem as vítimas civis dos bombardeios. Se nenhum deles chega aos pés do Mount Sinai (o preferido da elite endinheirada de Nova York), tampouco fazem feio na comparação com o Hospital das Clínicas de São Paulo e são mais bem equipados do que muitos postos da Rocinha ou da favela da Maré.
O que nos espera, porém, é sempre de travar a garganta, mesmo com as armações do Baath, o partido governista e sempre há armações, como nós mesmos comprovaremos, ao flagrar um suposto ferido que, terminado o encontro com a imprensa, levantou-se e foi embora para casa andando.
Ficará famoso ainda o caso do menino Abbas Ali, de quatro anos, cujas queimaduras, exibidas à imprensa, provavelmente aconteceram dias antes da guerra.
Mas são exceções óbvias. Os ataques “cirúrgicos”, as tais bombas “inteligentes” de que falava Bush e seu estado-maior antes de iniciado o conflito, são tão cínicos quanto a expressão “guerra pacífica”. É impossível despejar a 10 mil metros de altitude um armamento de 2.000 quilos cheio de explosivo e esperar que ele seja inteligente e cirúrgico –ou seja, que destrua só os alvos e mate exclusivamente os soldados.
Basta que uma das centenas de cápsulas disparadas pelas baterias antiaéreas acerte a bomba de maneira efetiva, e ela vai mudar de rota, mandando às favas a “inteligência”. E basta que o alvo militar a ser atingido seja vizinho de construções civis (como acontece, por exemplo, com as sedes do Baath) e lá se vai a “cirurgia”.
“Qual a culpa dessa criança? O que ela fez de errado?”, pergunta, chocado, nosso guia, o sempre contido Amjad, numa dessas visitas. Ele entende que homens maiores de idade morram na guerra, mesmo que não sejam soldados, “pois vão direto para o Céu, onde encontrarão Alá”. Essa crença resume mais ou menos o sentimento geral do iraquiano: homens morrendo na guerra são uma realidade do país.
Mas não se admite que mulheres e crianças sejam atingidas. E na lógica perversa da guerra, cada vez que uma bomba ou um míssil erra seu alvo, o mais provável é que as vítimas sejam mulheres, crianças e idosos, pois os homens estarão lutando em outro lugar, supostamente próximos dos alvos militares.
Crianças como Ali Ismail Abbas, de 12 anos, que perdeu os dois braços e criou comoção mundial. O menino foi achado sem esperança de sobrevivência num hospital da periferia de Bagdá e, graças aos holofotes de jornais e emissoras britânicos, provocou tal impacto na opinião pública mundial que teve um fundo criado em seu nome e ele se prepara para, em breve, viver com dois braços artificiais.
Ou Saddam Hussein, de 20 anos, que não teve a mesma sorte. Seu braço esquerdo foi decepado no massacre de Al-Shola, um dos lugares mais pobres de Bagdá, com ruas de terra e esgoto a céu aberto. Ali, dois mísseis perdidos mataram 50 pessoas e feriram outras cinquenta. Só numa família, morreram os pais e os três irmãos.
Saddam, que ganhou esse nome porque os parentes queriam agradar o fiscal do Baath de sua rua, viu pai e mãe morrerem no impacto. Quando olhou para o lado, sentiu o braço esquerdo repuxar, e, num segundo, só havia ali um pedaço de carne que jorrava sangue.
Visitamos o lugar logo após o ataque, e restos humanos ainda estavam no mesmo chão em que as crianças pisavam descalças. Uma delas nos arrastou para que olhássemos mais de perto o que parecia ser um pedaço de cérebro. Ela ria muito com nossa cara assustada.
O ataque ao mercado aconteceu cinco dias depois do que ficou conhecido como massacre de Al-Shaab (uma rua comercial perto do centro de Bagdá), em que 15 pessoas, a maioria mulheres e crianças, também morreram vítimas de uma bomba que foi desviada ou tinha alvo errado.
Sempre que os jornalistas chegam a esses locais, membros do governo iraquiano já limparam a área dos corpos e trouxeram pelo menos uma dezena de “manifestantes”, que ficam gritando slogans a favor de Saddam e contra Bush. Daquela vez, chegamos rápido demais, e a carnificina tinha sido demasiado grande.
Assim, embora os corpos em “melhor condição” já tivessem sido retirados, os mais despedaçados ficaram para trás. Isso, aliado a uma tempestade de areia que castigava a cidade havia dois dias, deixou um cenário de horror como não tornaremos a ver igual. Outro pedaço de cérebro repousava ao lado de algumas galinhas mortas, estufadas pelo deslocamento de ar que a queda da bomba causou.
O que foi um dia a mão esquerda de uma mulher se espalhava sobre um monte de pedras. Outro conjunto de quatro dedos foi localizado pela multidão numa calçada. Um soldado que entraria para o longo elenco dos heróis anônimos desta guerra pegou o pedaço de carne, fez uma oração e o enterrou sob as cinzas do buraco deixado pelo míssil.
Saiu aplaudido.
Trecho adaptado e atualizado do livro “Diário de Bagdá” (DBA, 2003), dos jornalistas Sérgio Dávila e Juca Varella, que terá edição revista e ampliada lançada nos próximos meses.