Documento da CIA revela que presidente da Câmara brasileira falou com embaixador americano 6 meses antes do golpe de 1964; trecho estava censurado

Arquivo censurado em 2018 e, depois, totalmente liberado em 2025 mostra censura a trecho sobre Ranieri Mazzinni — Foto: Reprodução/Arquivo Nacional dos EUA
Um documento ultrassecreto de novembro de 1963 revela que o então presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, contou ao embaixador americano, Lincoln Gordon, estar “profundamente desconfiado” das intenções do presidente João Goulart em relação ao futuro do Brasil. O arquivo, que tinha censura no trecho da conversa entre o embaixador e Mazzilli, teve seu conteúdo totalmente liberado pela primeira vez em 62 anos na terça-feira (18). Compare acima.
O diálogo entre o deputado brasileiro e o diplomata americano ocorreu seis meses antes do golpe militar de 31 de março de 1964, que derrubou o governo Goulart. À época, o presidente da Câmara era o primeiro na linha sucessória da Presidência da República.
O arquivo está entre os mais de 2 mil documentos sobre a investigação do assassinato do presidente americano John F. Kennedy, publicados na terça-feira (18). O material inclui relatórios de diversos órgãos americanos, como a CIA e o FBI.
As informações constam no “Checklist de Inteligência do Presidente”, um boletim ultrassecreto enviado ao então presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson, em 26 de novembro de 1963 — quatro dias após o assassinato de Kennedy.
Esse documento foi liberado ao público pelo governo americano pela primeira vez em 2018, mas com vários trechos censurados, incluindo a conversa entre Mazzini e o embaixador Gordon. A versão divulgada na terça-feira traz o boletim na íntegra.
Segundo o arquivo, a CIA alertava que o Brasil vivia um cenário de instabilidade política e poderia passar por um golpe de Estado.
Os americanos temiam que Goulart instaurasse um regime autoritário e buscasse alianças com países comunistas, como Cuba e União Soviética. Outros arquivos sugerem que conselheiros norte-americanos pareciam preferir um golpe militar, já que Goulart se recusava a “limpar a casa” para se livrar de comunistas.
Segundo o relatório da CIA, Mazzilli relatou sua preocupação com a condução política do país durante a reunião com Gordon.
“Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados e próximo na linha sucessória para a presidência, disse ao embaixador Gordon no sábado que desconfia profundamente das intenções de Goulart”, diz o documento.
Seis meses depois do encontro entre o embaixador Gordon e o presidente da Câmara, os militares derrubaram o governo Goulart. Mazzilli assumiu a presidência provisoriamente por duas semanas, até a posse do general Castelo Branco. Ele seguiu como deputado federal por São Paulo até 1967 e morreu em 1975.

Em entrevista ao Jornal Nacional em 2014, o historiador da UFRJ Carlos Fico afirmou que arquivos do governo americano revelados anteriormente mostram que Gordon conduziu esforços para derrubar o governo Goulart.
“Gordon teve uma importância muito grande no convencimento do Departamento de Estado [dos EUA] da tese segundo a qual João Goulart daria um golpe ou criaria uma República Sindicalista. E por ser um personagem politicamente frágil, os comunistas tomariam conta desta República Sindicalista”, afirmou.
Felipe Loureiro, professor de Relações Internacionais da USP, explica que o principal objetivo dos Estados Unidos no Brasil, à época, era estratégico e voltado à segurança nacional norte-americana.
“Havia um temor por parte de Washington de que o governo Goulart pudesse criar condições para uma crescente esquerdização do país”, diz o professor.
“Não se tratava, necessariamente, de uma transição imediata para o bloco comunista, mas sim de um processo gradual que, ao longo do tempo, poderia aproximar o Brasil de países comunistas ou, pelo menos, de nações neutras no contexto da Guerra Fria.”
‘Mundo da fantasia’

O documento ultrassecreto mostra que a CIA tinha uma base de operação no Brasil. Outros arquivos sugerem que funcionários da agência atuavam no Rio de Janeiro, além de São Paulo, Brasília, Recife e Porto Alegre.
Com base em informações sobre a política brasileira, a agência comunicou ao governo dos EUA que Goulart poderia estar planejando um golpe para assumir controle total do poder. No entanto, os agentes acreditavam que essa medida poderia fracassar.
“Nossa estação no Brasil acredita que Goulart está vivendo em um mundo de fantasia. Ele parece estar desconectado da realidade ou muito mal informado. A opinião pública não está com ele, e a tradição de que o poder político só deve ser transferido constitucionalmente é muito forte no exército”, afirma o documento.
Ainda segundo o boletim, alguns opositores estavam conspirando para derrubar o governo Goulart. No entanto, o movimento perdeu força após não receber o apoio do general Pery Bevilacqua, que comandava o 2º Exército — atual Comando Militar do Sudeste.
Os americanos classificaram Bevilacqua como um “ponto de discórdia”, afirmando que ele poderia perder o cargo. De fato, no fim de 1963, o general foi transferido para o comando do Estado-Maior das Forças Armadas.
Ao longo da história, Bevilacqua ficou conhecido por ser um militar legalista, já que se opôs ao golpe militar de 1964 e tentou convencer João Goulart a adotar uma postura diferente para garantir a continuidade da democracia no Brasil.