EUA se prepararam “rigorosamente” para potencial ataque nuclear russo na Ucrânia em 2022, dizem autoridades

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Míssil balístico nuclear Yars, testado pela Rússia

No final de 2022, os Estados Unidos começaram a “se preparar rigorosamente” para a possibilidade de a Rússia atacar a Ucrânia com uma arma nuclear, no que teria sido o primeiro ataque do tipo desde que os EUA lançaram as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki em 1945.

A informação foi dada à CNN Internacional por duas autoridades seniores do governo.

No livro “O Retorno das Grandes Potências”, que será publicado em 12 de março, o jornalista da CNN Internacional Jim Sciutto conta sobre os bastidores, incluindo detalhes exclusivos sobre o nível sem precedentes de planejamento de contingência realizado por altos funcionários da administração Biden.

“Foi isso que o conflito nos apresentou e por isso acreditamos e penso que é nosso direito nos preparar rigorosamente e fazer todo o possível para evitar que isso aconteça”, disse uma das autoridades.

O que levou a administração Biden a chegar a uma avaliação tão surpreendente não foi um indicador, mas uma coleção de desenvolvimentos, análises e – crucialmente – novas informações altamente sensíveis.

O medo do governo, afirmou o outro alto funcionário do governo, “não era apenas hipotético —​ também se baseava em algumas informações que coletamos”.

“Tivemos de planejar para estarmos na melhor posição possível caso este acontecimento, que já não é mais impensável, realmente acontecesse”, disse o mesmo funcionário.

Durante este período, no meio de 2022, o Conselho de Segurança Nacional convocou uma série de reuniões para implementar planos de contingência “no caso de haver uma indicação muito clara de que estavam prestes a fazer algo, atacar com uma arma nuclear, ou se o fizessem, como responderíamos, como tentaríamos evitá-lo ou dissuadi-lo”, explicou a primeira autoridade.

“Não creio que muitos de nós, ao iniciarmos o nosso trabalho, esperávamos passar uma quantidade significativa de tempo a nos preparando para um cenário que há alguns anos se acreditava ser de uma época passada.”

Russos cercados

O final do verão (do Hemisfério Norte) de 2022 se revelou um período devastador para as forças russas na Ucrânia. À época, os ucranianos começavam a avançar sobre Kherson, região ocupada pela Rússia no sul.

A cidade tinha sido a maior vitória da Rússia desde a invasão. Agora, corria o risco de ser perdida na contraofensiva ucraniana.

Crucialmente, à medida que as forças ucranianas avançavam, unidades russas inteiras corriam o risco de serem cercadas. A opinião dentro da administração era que uma perda tão catastrófica poderia ser um “gatilho potencial” para a utilização de armas nucleares.

“Se um número significativo de territórios conquistados pela Rússia fossem retomados – e muitas vidas russas fossem perdidas – isso seria uma espécie de precursor de uma ameaça potencial diretamente ao Estado russo”, disse o primeiro alto funcionário do governo.

“Naquela época, em Kherson, havia sinais crescentes de que as linhas russas poderiam entrar em colapso. Dezenas de milhares de soldados russos eram potencialmente vulneráveis.”

A Rússia estava perdendo terreno dentro da Ucrânia e não o seu próprio. Mas as autoridades norte-americanas estavam preocupadas com o fato de o presidente russo, Vladimir Putin, ver as coisas de forma diferente.

Ele disse aos russos em Kherson que a cidade era agora parte da própria Rússia e, portanto, poderia considerar uma perda devastadora ali como uma ameaça direta para ele e para o Estado russo.

“A nossa avaliação, já há algum tempo, era que um dos cenários em que eles contemplariam o uso de armas nucleares [incluía] coisas como ameaças existenciais ao Estado russo, ameaças diretas ao território russo”, disse o primeiro alto funcionário da administração.

Numa tal avaliação, a Rússia poderia encarar um ataque nuclear tático como um elemento dissuasor contra novas perdas de território controlado pela Rússia na Ucrânia, bem como qualquer potencial ataque à própria Rússia.

Alarme falso

Ao mesmo tempo, a máquina de propaganda russa fazia circular uma história sobre uma bomba suja ucraniana, que as autoridades norte-americanas temiam que pudesse servir de cobertura para um ataque nuclear russo.

Em outubro de 2022, o ministro da defesa da Rússia, Sergei Shoigu, fez uma série de telefonemas para autoridades de defesa nos EUA, Reino Unido, França e Turquia, dizendo-lhes que o Kremlin estava “preocupado com possíveis provocações de Kiev envolvendo o uso de uma arma suja”.

Os EUA e outras autoridades ocidentais rejeitaram as advertências russas. Ainda assim, o embaixador da Rússia na ONU entregou uma carta diretamente às Nações Unidas detalhando a mesma alegada ameaça.

Autoridades russas afirmavam que a Ucrânia culparia a Rússia pelo ataque.

As autoridades norte-americanas rejeitaram as advertências russas, mas temeram a motivação por trás delas.

“[Sobre] a mensagem da Rússia, avaliamos que não era fundamentada na realidade”, disse o primeiro alto funcionário da administração.

“Mais preocupante” para a autoridade era que os russos diriam estas coisas “ou como pretexto para fazerem algo ‘maluco’ ou como disfarce para algo que eles próprios pretendiam fazer. Então isso foi bastante alarmante.”

Mas houve mais um evento que elevou essas preocupações a um novo nível. As agências de inteligência ocidentais receberam informações de que havia agora comunicações entre autoridades russas discutindo explicitamente um ataque nuclear.

Tal como o primeiro alto funcionário da administração me descreveu, havia “indicações de que estávamos notando, através de outros meios, que isto era pelo menos algo que os níveis mais baixos do sistema russo estavam discutindo”.

O acesso dos EUA às comunicações internas russas já se tinha mostrado capaz antes.

No período que antecedeu a invasão da Ucrânia, os EUA interceptaram comandantes militares russos que discutiam os preparativos para a invasão, comunicações que faziam parte da avaliação da inteligência dos EUA, mais tarde provada precisa, de que uma invasão era iminente.

“Nunca é uma avaliação direta, em preto e branco”, disse o primeiro alto funcionário do governo. “Mas o nível de risco parecia estar aumentando, muito além de onde esteve em qualquer outro momento.”

Os EUA saberiam?

Em nenhum momento os EUA detectaram informações de inteligência indicando que a Rússia estava tomando medidas para mobilizar as suas forças nucleares para levar a cabo tal ataque.

“Obviamente demos alta prioridade ao rastreamento e tínhamos pelo menos alguma capacidade para rastrear esses movimentos de suas forças nucleares”, disse a autoridade.

“E em nenhum momento vimos qualquer indicação de tipos de medidas que esperávamos que eles tomassem se estivessem seguindo o caminho do uso de armas nucleares.”

No entanto, as autoridades norte-americanas não tinham a certeza de saber se a Rússia estava instalando armas nucleares tácticas.

Ao contrário das estratégicas, capazes de destruir cidades inteiras, as armas nucleares tácticas ou de campo de batalha são suficientemente pequenas para serem transportadas silenciosamente e podem ser disparadas a partir de sistemas convencionais já implantados no fronte.

“Se o que eles iriam fazer era usar uma arma nuclear tática, particularmente uma arma nuclear tática de muito baixo rendimento e particularmente se eles iriam usar apenas uma ou um número muito pequeno, não estava cem por cento claro para nós”, continuou o alto funcionário.

Várias autoridades participaram de uma divulgação urgente. O secretário de Estado, Antony Blinken, comunicou as preocupações dos EUA “muito diretamente” ao ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, de acordo com outros membros do governo.

O presidente do Estado-Maior Conjunto, general Mark Milley, ligou para seu homólogo russo, general Valery Gerasimov.

De acordo com um alto funcionário dos EUA, o presidente Joe Biden enviou o diretor da CIA, Bill Burns, para falar com Sergey Naryshkin, chefe do serviço de inteligência estrangeiro da Rússia, na Turquia para comunicar as preocupações dos EUA sobre a ocorrência de um ataque nuclear e avaliar as intenções russas.

Os EUA também trabalharam em estreita colaboração com os seus aliados, tanto para desenvolver planos de contingência para um ataque nuclear russo como para comunicar avisos ao lado russo sobre as consequências de tal ataque.

“Realizamos uma série de conversas discretas com aliados importantes para analisar nossas reflexões”, disse a primeira autoridade.

“Essa é uma marca registrada de toda a nossa abordagem: somos melhores e mais fortes fazendo essas coisas quando estamos totalmente alinhados com nossos aliados.”

Índia e China

O premiê indiano Narendra Modi e o presidente chinês Xi Jinping
O premiê indiano Narendra Modi e o presidente chinês Xi Jinping / Foto: Twitter/Reprodução

Além disso, os EUA procuraram obter a ajuda de países não aliados, em particular a China e a Índia, para desencorajar a Rússia de tal ataque.

“Uma das coisas que fizemos foi não apenas enviar-lhes mensagens diretamente, mas instar fortemente, pressionar e encorajar outros países, aos quais eles poderiam estar mais atentos, a fazerem a mesma coisa”, disse-me o segundo alto funcionário da administração.

Autoridades dos EUA dizem que a divulgação e as declarações públicas do líder chinês Xi Jinping e do primeiro-ministro indiano Narendra Modi ajudaram a evitar uma crise.

“Acredito que mostrar à comunidade internacional a preocupação com isto, particularmente a preocupação dos principais países com a Rússia e o Sul Global, também foi um fator útil e persuasivo e mostrou-lhes qual poderia ser o custo de tudo isto”, disse a primeira autoridade.

“Penso que o fato de sabermos que a China pesou, a Índia pesou, outros influenciaram, pode ter tido algum efeito no seu pensamento”, afirmou o outro. “Não posso demonstrar isso de forma positiva, mas acho que essa é a nossa avaliação.”

Desde o susto nuclear no final de 2022, as autoridades dos EUA e da Europa foram questionadas pelo jornalista da CNN Internacional se identificaram alguma ameaça semelhante.

O perigo diminuiu à medida que a guerra entrou num período de relativo impasse no leste. No entanto, os EUA e os seus aliados permanecem vigilantes.

“Desde então, estamos menos preocupados com a perspectiva iminente, mas não é algo que esteja sempre longe das nossas mentes”, afirmou um membro do governo.

“Continuamos a refinar os planos e não está fora de questão que possamos enfrentar pelo menos o risco crescente de que isso aconteça novamente nos próximos meses.”

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