‘Experiência aterrorizante’: vítima da coach Kat Torres diz que era obrigada a fazer programa com ricaços nos EUA e revela como era ameaçada e manipulada

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Desirrê Freitas: jovem diz que foi manipulada por Kat Torres para afastar amigos e parentes — Foto: Reprodução

A jovem Desirrê Freitas, de 27 anos, vítima que sustenta o inquérito que mantém a coach espiritual Katiuscia Torres Soares, de 34 anos, presa há quase um ano, resolveu escrever um livro para contar sobre as experiências vividas por ela nos Estados Unidos sob poder da “seita” liderada pela autodeclarada bruxa. O título, “@searchingDesirrê — Minha jornada pela liberdade” é uma referência ao grupo que foi criado por parentes e amigos da brasileira para encontrá-la e resgatá-la, em meados do ano passado, depois que ela perdeu totalmente o contato com todos que conhecia. Em entrevista ao GLOBO, ela conta pela primeira vez detalhes sobre a rotina de exploração sexual, violência física e manipulação psicológica.

“Este livro discutirá as experiências de uma jovem vítima de tráfico humano, abuso emocional, estupro, situação análoga à escravidão e uso de entorpecentes. Isso pode desencadear gatilhos em leitores com experiências semelhantes”, já alerta o prefácio.

— Eu precisava falar a verdade. Precisava me abrir e contar todos os detalhes do que realmente aconteceu. E faço isso como um alerta, para que outras meninas não passem pelo o que eu estou passando. Inclusive, parte da renda do livro será destinado às vítimas de tráfico humano — comenta Desirrê. — Eu renunciei à minha individualidade e às minhas crenças para seguir as orientações dela, deixando para trás minha vida, família e amigos. As consequências foram inimagináveis.

‘Anos de manipulação’

Desirrê conta que conheceu Kat Torres há sete anos e diz que hoje consegue observar que o trabalho de manipulação foi lapidado pela guru desde esta época.

— Eu comecei a seguir a página dela em 2016, quando tinha 20 anos, e tive a primeira consulta em 2018, com 22. Tive contato com ela por todos esses anos, até 2022. Nos tornamos muito próximas e a gente se falava muito por telefone. Foi quando ela me disse que estava passando por um momento difícil e que precisava de ajuda, porque não tinha amigos e família e não confiava em mais ninguém além de mim. Fui ajudá-la nos EUA e acabou acontecendo tudo o que aconteceu — introduz.

Searching Desirré: Livro escrito por jovem vítima de tráfico humano chega às livrarias em dezembro, mas já está em pré-venda — Foto: Divulgação
Searching Desirré: Livro escrito por jovem vítima de tráfico humano chega às livrarias em dezembro, mas já está em pré-venda — Foto: Divulgação

Rotina de exploração sexual e uso forçado de drogas

A jovem, que vivia na Alemanha, acabou indo ao encontro de Katiuscia, sem saber, segundo ela, que estaria sendo cooptada para um esquema de exploração sexual. Afirma que era forçada a se prostituir em stripclubs e a se relacionar sexualmente com figuras da alta sociedade americana — mesmo contra a vontade. Ela conta que chegou ao extremo de ser obrigada a suspender o método contraceptivo a mando de Kat para engravidar de um cliente milionário.

— Eu cheguei lá e, num primeiro momento, tudo parecia normal. Depois ela conseguiu me influenciar, me manipular e me convencer a trabalhar nos clubes mediante ameaças. Comecei fazendo programas de até mil dólares, e depois surgiram clientes que pagavam até US$ 20 mil. Eram clientes poderosos, atletas famosos, empresários, políticos, produtores de Hollywood — revela. — Um deles, a Kat viu que era o que pagava melhor, e me convenceu a tirar o DIU para engravidar dele. Depois, ela mudou de ideia, mas eu já tinha tirado e não pude parar de trabalhar em nenhum momento. Por conta disso, peguei uma infecção, fiquei doente, tive que tomar antibiótico.

Vítima ou cúmplice?: Desirrê foi presa nos EUA e deverá ser deportada — Foto: Fraklin County Sheriff's Office
Vítima ou cúmplice?: Desirrê foi presa nos EUA e deverá ser deportada — Foto: Fraklin County Sheriff’s Office

Ela revela que também era forçada por Katiuscia a usar drogas para satisfazer clientes.

— Ela me forçava a fazer tudo o que os clientes queriam para arrecadar mais dinheiro. Inclusive com uso de drogas. Tive que usar cocaína por várias vezes.

‘Se aproveitava da fragilidade das pessoa’: guru ameaçava até se matar para ter ordens atendidas

A jovem conta ainda sobre os métodos de manipulação usados pela líder da seita.

— Ela usava vários métodos de manipulação, todos possíveis. Ou usava a “Voz” (entidade criada por Katiuscia e que deu nome ao livro publicado por ela, que originou sua seita), dizendo que eu seria punida se não fizesse o que ela estava mandando. Fazia chantagem emocional também ou dizia que ia se machucar, se matar. Por vezes também usava da agressividade: gritava muito com a gente — narra. — Eu conheço direta e indiretamente outras vítimas. Não sou próxima delas, mas tenho ciência de que ela (Kat Torres) usou técnicas parecidas, sempre se aproveitando da fragilidade de cada pessoa. Ela conhecia as vítimas dela. Estudou, sabia como manipular as pessoas e, para cada vítima, ela usou formas diferentes.

Desirrê também revela como a coach reagiu quando o caso ganhou repercussão a partir das famílias.

— Ela já sabia a influência que ela tinha na minha vida e das seguidoras. Sabia de toda a minha vida, conhecia todos os meus pontos fracos e fortes. Sabia que minha relação com meus pais, por mais que tivesse contato com eles, no passado não era das mais harmoniosas e usou isso para manipular. Falava que todos estavam contra nós, que só podíamos confiar nela e na “Voz”. Obviamente, nada aconteceu do dia para a noite. Ela me manipulou por anos, me convenceu e eventualmente cortei contato com todo mundo. Quando tudo estourou na mídia ela dizia: “Olha o que fizeram com você, destruíram a sua vida”. E eu não via na época que estavam me ajudando… pensava apenas que estava sendo exposta.

‘Experiência aterrorizante’

A questão do misticismo era obsessão de Kat Torres. A jovem conta que ela era instruida pela guru a ir a lojas voltadas a rituais e bruxaria nos EUA.

— Tudo ela remetia às bruxarias. Ela fazia várias bruxarias para mim e eram tantas que eu nem sei tudo o que ela fazia. Mas dizia que era para ganhar dinheiro, destruir “haters”, ajudar no relacionamento dela. Tudo ela resolvia com bruxaria. Chegava a gastar US$ 3 mil dólares por semana com artigos de bruxaria. Eu era obrigada a ir às lojas para ela não ter que ir com o marido. Cheguei até a ir numa loja de artigos satânicos e foi uma experiência aterrorizante.

Desirrê estava com Kat Torres quando foram detidas pela polícia de fronteira americana. Ela diz que, naquela semana, Torres enviou passagens e ordenou que ela a encontrasse na região de Maine, próxima à fronteira dos EUA com o Canadá. Ela afirma que, ao contrário do que foi dito à época, ela não tinha a intenção de atravessar a fronteira ilegalmente, porque já tinha morado em solo canadense e tinha visto. No entanto, não sabia sobre as intenções da coach.

— Ela me mandou passagens e disse que eu deveria encontrar com ela. Ela já estava nos arredores de Connecticut e Maine, já tinha alugado essa casa, tinha todo um planejamento. Mas eu não estava tentando fugir ilegalmente para o Canadá. Eu morei no Canadá e tenho visto, poderia voltar quando quisesse. Ela não dizia que a gente estava fugindo da polícia. Mas para mim, obviamente, ela nunca disse o que estava fazendo. Era sempre “invenção dos haters”, e dizia que estava com medo que eles a atacassem nas ruas.

Recuperação do trauma

Desde que retornou ao Brasil e ao convívio da família, Desirrê conta que vive um processo de recuperação do trauma e também de entendimento sobre o que viveu. Ela, que sequer chegou a se considerar uma vítima num primeiro momento, hoje conta que já tem discernimento sobre o que se passou com ela em solo americano.

— Eu sempre fui uma pessoa independente, sempre trabalhei muito, e aceitar que eu fui vítima foi algo muito difícil. Sempre tomei responsabilidade pelos meus atos, então foi muito difícil de aceitar. Eu negava que era vítima, neguei por muito tempo, e depois foi um processo para entender que havia sido vítima de manipulação. Fui vendo que não foi algo da noite para o dia, foram anos, tudo planejado por ela. Quanto mais eu fui escrevendo o livro, mais eu fui entendendo. Chorei bastante escrevendo. Pensei em desistir várias vezes, mas penso que se eu passei por essa situação, outras pessoas podem estar passando por situações parecidas. Escrevo meu livro como alerta. Não pude evitar o que aconteceu. Pessoas tentaram me alertar, e eu não conseguia ver os sinais. Eu me importava com ela, que tinha se tornado uma pessoa próxima a mim. Aceitar que ela foi capaz de fazer tudo isso foi o mais difícil.

Katiuscia Torres: presa no último dia 2 de novembro, nos EUA — Foto: Reprodução / Franklin County
Katiuscia Torres: presa no último dia 2 de novembro, nos EUA — Foto: Reprodução / Franklin County

Ela conta que o livro, publicado pela editora Disruptalks, entrará em pré-venda a partir do dia 26 de outubro e chega às livrarias no dia 1º de dezembro. Por fim, reforça a esperança de que Katiuscia Torres seja punida.

— Eu espero que a justiça seja feita. Mas isso não está nas minhas mãos, está nas mãos da Justiça brasileira. O que eu puder fazer para ajudar como alerta de forma pública ou com as investigações, eu vou fazer — conclui.

‘Mentiras’, define defesa

Procurado para comentar sobre o relato, o advogado Rodrigo Alves da Silva Menezes, responsável pela defesa de Katiuscia Torres Soares, negou as acusações.

— Em apertadíssima síntese, a defesa da Katiuscia Torres Soares enxerga somente o oportunismo midiático e a busca do sucesso a qualquer custo. Mesmo que sob mentiras como é o caso — afirma.

Presa há quase 1 ano, coach está em Bangu (RJ)

Há onze meses, a falsa guru espiritual Katiuscia Torres Soares, de 34 anos, a Kat Torres, era presa em Minas Gerais, acusada de tráfico internacional de pessoas, ao desembarcar de um avião vindo dos EUA com outras dezenas de brasileiros a bordo, todos deportados por estarem irregulares no país norte-americano. Desde então, a mulher que já trabalhou como atriz e modelo no exterior, ganhou milhões de seguidores com memes na internet, e que chegou a ter uma vida financeiramente estável em Los Angeles — antes de resolver liderar uma suposta seita religiosa —, teve sua prisão convertida em preventiva em solo brasileiro e foi transferida para um presídio feminino em Bangu, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.

A coach ainda tenta um habeas corpus, através de sua defesa, que sustenta que o caso não seria de responsabilidade da Justiça Federal e alega fragilidade nas provas apresentadas. O recurso segue aguardando nova apreciação no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em abril, a corte já havia negado um pedido anterior. Não houve, até agora, nenhuma condenação.

Hoje, Kat Torres divide cela com outras mulheres no Instituto Penal Santo Expedito, em Bangu (RJ). Sua adaptação foi difícil no início: ela se queixou de que houve recepção hostil por parte das outras presas, chegou a ser isolada por algumas vezes e pedir para voltar a Minas Gerais. Segundo o advogado, as questões foram superadas.

– Essas possíveis questões postas já se encontram superadas por ela. Hoje tem boa convivência com as demais colegas de cárcere e não há pedidos para retorno para MG, uma vez que aguardamos o desfecho do processo por ora – comentou.

Zachary Menkin que, afirma a defesa, é casado no papel com Katiuscia Torres, também é um parceiro que parece estar se distanciando da guru. Apesar de o defensor dela afirmar que segue contando com o apoio do rapaz e que nunca deixou de fazer contato com ele, o homem, segundo fontes ligadas à família, estaria com uma nova namorada. Há informação de que, desde que ela foi presa, ele vinha mandando dinheiro ao Brasil para pagar os honorários da defesa da então companheira.

Zach aparecia com frequência nas fotos e vídeos publicados por Katiuscia durante suas “seitas”. As denunciantes também afirmam que a interação delas com ele era frequente. Ainda não se sabe se o homem, cerca de 10 anos mais novo que a ex-modelo, teve participação ou sabia do suposto esquema tocado pela namorada. Fato é que a brasileira teria se tornado persona non-grata na família do rapaz. Uma pessoa ouvida por uma fonte declarou que ele “está melhor, e que começou a trabalhar com o irmão dele”. Disse ainda que “também arrumou uma namorada, mais velha que ele, da idade da Kat”, mas que “ela é uma pessoa legal e decente, graças a Deus”. E concluiu: “Zach ainda está bem danificado pelo que aconteceu”.

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