Golpe de Hitler: quem é o homem acusado de planejar a morte de moradora de rua para quem fez seguro milionário

0
image (17)

Hitler da Silva Ângelo é preso em sua casa na Zona Norte, pela morte de Luciene da Silva Gomes, que vivia em situação de rua — Foto: Divulgação

As delegacias do Estado do Rio de Janeiro registraram quase cem mil estelionatos nos primeiros oito meses do ano. São falsas transferências bancárias, compras, sequestros de parentes, pedidos de empréstimos, uma infinidade de fraudes. Mas a imaginação e a crueldade de Hitler da Silva Ângelo, de 46 anos, preso anteontem pela Polícia Civil, foram além. Ele é acusado de participar de um esquema para receber R$ 4 milhões de dois seguros de vida feitos em nome de Luciene da Silva Gomes, de 32 anos, que vivia em situação de rua e foi morta a facadas.

Suspeito de ser o mentor intelectual da morte, Hitler contratou os seguros em nome da vítima em 5 de fevereiro deste ano. Dezesseis dias depois do fechamento do contrato, o corpo da segurada foi encontrado com sinais de violência no pescoço e tórax, provocados por um objeto perfurocortante, na Rua Caminho da Liberdade, em Santa Cruz.

O criminoso já tinha histórico de golpes anteriores, e havia deixado a prisão em novembro do ano passado: foi detido em julho de 2023 sob a acusação de chefiar uma organização criminosa envolvida em estelionato e falsificação de empréstimos. Na época, uma gerente de banco também foi presa. O esquema envolvia uma empresa de fachada, a Fênix Assessoria e Consultoria. Eles usavam os documentos dos clientes para abrir contas e obter empréstimos sem que as vítimas soubessem.

Antes mesmo de a polícia suspeitar que o assassinato estivesse relacionado a uma fraude de seguro, as circunstâncias em que o corpo foi localizado chamaram a atenção dos investigadores. Luciene estava em uma região de mata, onde não havia câmeras ou estabelecimentos comerciais, e com a carteira de identificação presa à gola da roupa. O propósito da quadrilha, segundo a polícia, era evitar que ela fosse enterrada como indigente, o que prejudicaria a execução do golpe.

Por que a Luciene?

A polícia ainda não sabe como a quadrilha escolheu Luciene como vítima, mas as investigações indicam que ela passava seus dias nas ruas da Zona Norte, mesma região onde Hitler morava.

— Ela foi morta em um local completamente diferente do habitual, desguarnecido de câmeras e de uma série de outros elementos que seriam favoráveis à investigação. Independentemente de Hitler ser o executor do homicídio, ele figura como autor intelectual. A vítima só morreu por conta desse seguro de vida contratado — disse a delegada Luciana Fonseca, da Delegacia de Homicídios da Capital (DHC).

Apesar de milionário, o golpe envolveu pessoas em situação de extrema vulnerabilidade. Além de Luciene, os dois beneficiários indicados na contratação dos seguros eram moradores de rua. Apesar de ter contratado os seguros on-line, Hitler deixou rastros. Ele foi a uma agência bancária fazer o pagamento da primeira parcela, além de ter mencionado seu e-mail na ficha preenchida na internet. Quando a polícia suspeitou de crime financeiro, descobriu que havia ocorrido movimentação financeira numa conta bancária de Luciene. Pediram as imagens da agência e, então, identificaram o estelionatário.

— Ele utilizava dados que já tinha de uma série de vítimas de outros golpes para criar contas falsas e, assim, receber o dinheiro — explicou a delegada.

A investigação da morte de Luciene continua para identificar cúmplices e verificar a possível participação de algum funcionário do banco onde o seguro foi feito. Hitler foi autuado por homicídio qualificado e levado nesta quinta-feira para a Cadeia Pública José Frederico Marques, em Benfica.

Mais um deslize

Além da identificação presa à roupa de Luciene, a polícia também desconfiou do interesse que a morte de Luciene despertou. Vários advogados entraram com pedidos para ter acesso ao inquérito e a documentos da vítima. O representante de uma suposta ONG também fez contato com a família oferecendo R$ 3 mil para pagar o enterro. O golpista precisava do atestado de óbito para receber os seguros.

— A família informou que uma ONG estava auxiliando no enterro de Luciene. Mas ninguém nunca apareceu pessoalmente, era tudo por telefone. Eles chegaram a transferir valores para os parentes, condicionando a ajuda à obtenção dos documentos — contou a delegada.

Professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio, Gustavo Kloh explicou que o Código Civil tenta evitar a contratação de seguro por terceiros, exigindo a apresentação de “legítimo interesse”. Isso significa que, para ter direito a tratar de dados pessoais sem o consentimento do titular, é preciso estar dentro da lei, ter lastro em situações concretas e estar vinculado a finalidades legítimas.

— O Código Civil diz que, se o contrato não é para um parente, deve haver um processo complexo para justificar o motivo do solicitante. Como Hitler não tinha legítimo interesse nem parentesco com ela (Luciene), ele não deveria ter conseguido contratar o seguro. Alguma coisa estranha aconteceu nesse processo — explicou.

Kloh disse que, genericamente, qualquer seguro cobre homicídio, mas o valor do benefício depende da idade, das condições do segurado e da mensalidade paga.

— Em geral, o contratante paga cerca de 3% ao ano do valor segurado. Ou seja, em um seguro de R$ 4 milhões, a mensalidade seria de cerca de R$ 10 mil por mês — afirma Kloh.

Em nota, a Defesa de Hitler da Silva Ângelo disse que “durante a persecução penal irá demonstrar e comprovar que o Ângelo não tem absolutamente nenhuma participação nos delitos aos quais estão sendo imputados a ele, sobretudo no crime de homicídio”.

Veja na íntegra

“A Defesa de Hitler da Silva Ângelo, acusado dos delitos de estelionato e homicídio, vem destacar e reiterar o respeito ao direito constitucional à presunção de inocência. O processo encontra-se em fase inicial, impedindo, assim, que detalhes específicos sejam divulgados ou discutidos publicamente. Sendo assim, a Defesa manifesta-se que irá acessar o inquérito policial para verificar os pormenores. Por hora, a Defesa afirma que durante a persecução penal irá demonstrar e comprovar que o Ângelo não tem absolutamente nenhuma participação nos delitos aos quais estão sendo imputados a ele, sobretudo no crime de homicídio. Por fim, a Defesa Técnica, assim como o nosso cliente, coloca-se à disposição da Justiça para colaborar no que for preciso durante o andamento processual. Agradecemos a compreensão e reiteramos nosso empenho na busca pela justiça, verdade e esclarecimentos dos faros.”

Um golpe a cada 3,5 minutos

De janeiro a agosto deste ano foi registrado um estelionato a cada três minutos e meio no Estado do Rio. O número de casos (98.961), o mais alto da série histórica, iniciada em 2003, é 26% superior ao dos mesmos oito meses do ano passado. Desde o início da contagem do crime, os casos de golpe tiveram um salto de 14 vezes.

About Author

Compartilhar

Deixe um comentário...