Lei sancionada por Lula facilita ‘privatização’ da água para plantio de eucalipto, afirmam pesquisadores

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Área desmatada ao lado de plantação de eucaliptos na região de Setubinha (MG), cidade do Vale do Jequitinhonha, em foto de 2022 - SOS Mata Atlântica - 20.mai.2022/Divulgação via AFP

Enquanto internautas acompanhavam discussões entre Luana Piovani e Neymar e tentavam entender o termo “privatização das praias”, o presidente Lula sancionou uma outra lei que, segundo pesquisadores, facilita a “privatização da água” de rios e do lençol freático em áreas destinadas à silvicultura —o cultivo de árvores para extração.

Com texto de autoria do senador Álvaro Dias (Podemos-PR), a lei 14.876 altera a Política Nacional do Meio Ambiente e exclui esse tipo de monocultura do rol de atividades potencialmente poluidoras, simplificando o processo de licenciamento ambiental.

Na região do Alto Jequitinhonha, em Minas Gerais —o estado que mais produz eucalipto no país—, a escassez de água é uma realidade há décadas. Pequenos agricultores da Chapada das Veredas passaram a depender de cisternas e de caminhões-pipa e viram a diversidade alimentar minguar.

“A plantação de eucalipto prejudicou em tudo. As nascentes foram diminuindo, diminuindo e muitas secaram”, conta a agricultora familiar Salete Maciel, da comunidade rural Gentio, no município de Turmalina (MG).

Estudos do IFNMG (Instituto Federal do Norte de Minas Gerais) e da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) relacionam a escassez hídrica à substituição da vegetação nativa do cerrado pela monocultura de eucalipto.

Os pesquisadores falam em “privatização dos recursos naturais”. “[Os donos das propriedades] monopolizaram essas fontes. Até então, elas eram de uso comum, partilhadas por um conjunto de comunidades e famílias, mas se tornaram de uso privativo das empresas”, avalia a cientista social Flávia Maria Galizoni, professora do Instituto de Ciências Agrárias da UFMG.

A Amif (Associação Mineira da Indústria Florestal), por sua vez, defende que o setor conserva mais de 1,3 milhão de hectares de vegetação nativa, o que seria mais da metade de toda a área conservada pelo próprio estado. A entidade faz parte do Conselho da Indústria Brasileira de Árvores (conhecido como Ibá) e representa as 25 maiores empresas de base florestal em Minas Gerais.

“A agroindústria que representamos não promove o uso alternativo do solo no sentido de substituir o cerrado primário por floresta plantada. Esta alteração de uso de solo não é recomendada pelas atuais práticas de manejo sustentável, inclusive, é notório que MG possui uma extensa área antropizada e de baixa produtividade, que são os locais determinados pelo setor para sua ampliação”, afirma a associação.

GESTÃO DO SOLO E DA ÁGUA

De acordo com o pesquisador Yuri Salmona, geógrafo e doutor em ciências florestais pela UnB (Universidade de Brasília), a vegetação nativa do cerrado se adapta ao clima sazonal, com chuva apenas de novembro a março.

“Entre algumas características, há a senescência, quando as folhas desidratam e diminuem o consumo de água. Em alguns casos, elas até caem, o que causa a redução da evapotranspiração [perda de água do ecossistema para a atmosfera]. Essa vegetação se adapta muito bem à sazonalidade do cerrado e desenvolve raízes profundas para coletar água no período seco.”

Já o eucalipto, natural da Oceania, precisa de água o ano todo. Embora existam estudos contrapondo essa visão sobre a espécie, há muitas evidências científicas que apontam para o consumo significativo e preocupante de água nessas monoculturas.

“As características do eucalipto precisam ser levadas em conta na gestão da água, a fim de garantir disponibilidade hídrica”, argumenta Salmona, que também é diretor-executivo do Instituto Cerrados.

A mudança de uso do solo diminui a recarga e a capacidade de armazenamento de água, segundo Vico Mendes Pereira Lima, engenheiro agrícola e professor do IFNMG. “A vegetação nativa consegue aproveitar em torno de 50% de tudo aquilo que chove para abastecer as reservas de água no solo. Os monocultivos de eucalipto só drenam cerca de 29%. Isso traz um déficit hídrico cumulativo.”

Sobre o uso da água pelas árvores plantadas, a Amif, entidade que representa o setor em Minas Gerais, defende que elas são parte significativa do ciclo de chuvas.

“As árvores captam água para seu crescimento e devolvem parte dela para a atmosfera, na forma de vapor”, diz. “O crescimento e manutenção de florestas, independente da finalidade, não é fisiologicamente uma atividade de consumo não devolutivo de água, as florestas são parte relevante ao ciclo hidrológico.”

LEI NA CONTRAMÃO DAS EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS

Publicado em 2022, o relatório Projeto Salvaguardas Socioambientais Reduzindo os Impactos da Monocultura de Eucalipto, do Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica, aponta para a redução média de 10 centímetros na altura do lençol freático por ano nas áreas de monocultura de eucalipto no Alto Jequitinhonha. Em 45 anos, a redução do lençol freático foi de 4,5 metros.

A Ambiental Media teve acesso com exclusividade a um estudo ainda não publicado, produzido por Lima e pesquisadores do IFNMG e da UFMG. Os resultados indicam redução da vazão de rios após a chegada da do eucalipto nas chapadas do Alto Jequitinhonha.

Eles analisaram o monitoramento feito pela ANA (Agência Nacional das Águas e Saneamento Básico) nos rios Araçuaí e Fanado, seu afluente, entre 1943 e 2019. O estudo verificou que a precipitação média anual e o escoamento base sofreram redução significativa a partir da década de 1980.

Nos anos 2000, a produção de água na bacia hidrográfica havia sofrido uma redução de 50% e, nas décadas seguintes, os rios apresentavam somente 10% da produção de água registrada anteriormente.

Salmona ressalta que, além das alterações de uso do solo, as mudanças climáticas globais também devem ser levadas em conta. “Você tem elementos climáticos que agem naquela região: diminuição do período de chuva, concentração das chuvas em um período mais curto, aumento do tempo da estiagem.”

O CASO DE TURMALINA

Pequenos agricultores do município de Turmalina, no nordeste de Minas Gerais, lembram de uma época com fartura de água mesmo na estação seca. “Hoje, no lugar onde você nasceu e se criou, se sente tipo preso. Antigamente, a gente circulava lá na chapada e coletava muitas frutas. Pegava jaca, pequi, cagaita, gravatá, jatobá”, conta José Carlos Xavier, morador da comunidade Campo Alegre.

O vice-prefeito, Warlen da Silva (PL), assume que o abastecimento na cidade pode ser comprometido. O município era abastecido pelo ribeirão Santo Antônio, que secou em 1996. A empresa municipal de água direcionou a captação para o rio Araçuaí, que também está perdendo vazão.

“Não tem [um plano]. O outro rio mais próximo é o Jequitinhonha, mas já está há uma distância bem razoável”, conta.

A Aperam, uma das maiores produtoras de eucalipto da região, afirma que “a tese de que o eucalipto empobrece o solo e seca as nascentes” não é verdadeira e que há muita “desinformação sobre essa cultura”.

“Como qualquer outra árvore, o eucalipto precisa de água para seu desenvolvimento e manutenção. Mas, assim como as raízes de outras culturas agrícolas, o eucalipto absorve a água das camadas mais superficiais do solo”, afirma, em nota.

A empresa diz que “segue rigorosamente os princípios de sustentabilidade no uso dos recursos hídricos”, que “todas as intervenções hídricas são realizadas em barramentos próprios que acumulam água de chuva, na qual possuem outorgas válidas e são submetidas a um rigoroso processo de monitoramento, assegurando a conformidade com todos os requisitos legais” e que “não realiza captação de água em nenhum rio, incluindo o rio Araçuaí”.

O governo de Minas, também procurado pela reportagem, afirma que “desenvolve um conjunto de medidas para garantir a segurança hídrica a todos os mineiros, incluindo a preservação de conjuntos aquíferos e das florestas, essenciais para a manutenção da qualidade da água”. O estado, em nota, não comentou, porém, especificamente o caso da Chapada das Veredas.

Para o governo mineiro, a silvicultura é uma atividade agrícola que está diretamente ligada ao desenvolvimento econômico e pode contribuir para a conservação do solo e da qualidade da água.

Até a publicação desta reportagem, o Ministério do Meio Ambiente, também procurado, não se posicionou sobre a lei 14.876. O texto será atualizado se enviada resposta.

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