Nos últimos tempos, tenho a impressão de viver em um não-país. Nada parecido com a destemida Ucrânia que o tirano Vladimir Putin taxa como um não-país. Até porque lá a resistência forjou um líder, enquanto por aqui a mediocridade de populistas domina. Habitamos um Brasil regido por um desconcertante pouco caso com as aflições humanas, dúbio, que emite sinais confusos, ressuscita corruptos e joga no lixo boa parte de suas virtudes. E isso não é de hoje, começou muito antes da covarde invasão de Putin à Ucrânia.
Diante da guerra, somos Dois Brasis. Não só os de Jacques Lambert, com as latentes desigualdades sociais sintetizadas por ele e que continuam se aprofundando há mais cinco décadas, mas em uma esfera em que o país sempre fora referência: a política externa.
Na ONU, o Brasil condena Putin, enquanto o presidente Jair Bolsonaro o adula. Uma barafunda apelidada de “posição de equilíbrio”, embora não pare em pé.
Bolsonaro, diga-se, é um dos maiores propagandistas do nosso não-país. Mergulha em desatinos de que nações ricas querem a Amazônia ao mesmo tempo que impulsiona a destruição da floresta. Reduz a fiscalização do Ibama, faz vista grossa aos desmatamentos e às queimadas, estimula o garimpo ilegal que deseja ver se esparramar por terras indígenas.
Ao mundo, já havia provado sua absoluta incapacidade em fóruns internacionais e nos pouquíssimos encontros bilaterais, um deles com Putin, a quem prestou solidariedade dias antes de o russo iniciar a matança de ucranianos. Por aqui, o presidente já havia dado mostras incisivas de sua indecência, escancarada no descaso e empatia zero no trato com a pandemia que tirou a vida de mais de 650 mil brasileiros, no acobertamento dos malfeitos de sua prole, na obsessão pela reeleição.
No âmbito da Justiça, o Brasil condenou meio mundo de políticos e empresários no Mensalão e Petrolão, recuperou recursos milionários desviados para financiar campanhas e engordar bolsos. Tudo anulado pelo não-país.
Não por inocência dos réus, mas por “suspeita de suspeição” do juiz da primeira instância e tecnicismos como foro de origem, que acabaram por anular todas as provas contra o ex Lula e que, agora há pouco, “perdoaram” as rachadinhas de Flávio Bolsonaro. Nas eleições de outubro, além de Lula, outras figurinhas carimbadas por condenações suspensas no nosso não-país devem disputar votos.
Na Procuradoria-Geral de Augusto Aras nada contra Bolsonaro anda e no STF, o aliado Nunes Marques garante a paralisia de todos os julgamentos de interesse de bolsonaristas. Uma maravilha de não-país.
Lula, candidato à Presidência e líder em todas as pesquisas de opinião, também aposta no não-país. Insiste nos laços com ditadores ditos de esquerda, repudia, mas com moderação excessiva, a guerra insana de Putin. Chega ao cúmulo de pedir que os dois lados baixem as armas, equiparando a vítima ao agressor. Exala dubiedade, tibieza.
Ao mesmo tempo que se move para marcar posição frente a Bolsonaro, tem de agradar aos seus, que, para condenar o imperialismo norte-americano, entregam-se à cegueira. Fecham os olhos para a frieza assassina de Putin, as prisões de opositores, a narrativa mentirosa que só se mantém com censura férrea aos meios de comunicação.
A loucura é tamanha que na mesma sexta-feira leio o petista frei Leonardo Boff reclamar que a guerra ofuscou a visita de Lula ao México nas “TVs corporativas”, e o ex-bolsonarista deputado Arthur do Val, candidato ao governo de São Paulo pelo Podemos de Sérgio Moro, dizer que as ucranianas “são fáceis, porque são pobres”.
Chega de não-pais. Quero o Brasil de volta.