O presidente eleito do Chile, Gabriel Boric, ao chegar para debate eleitoral em Santiago - Ivan Alvarado - 13.dez.21/Reuters

Chama a atenção uma coincidência entre o resultado da eleição chilena, na qual saiu vitorioso Gabriel Boric, candidato da Frente Ampla em aliança com o Partido Comunista, e o plebiscito de 1988 que pôs um fim na ditadura de Augusto Pinochet. Naquele ano o não ao ditador venceu por 55,9 a 44,1%. No domingo Boric se elegeu com os mesmos números, até nas vírgulas.

As coincidências não param aí. Os chilenos foram às urnas no domingo para decidir entre a democracia e o retorno do pinochetismo ao poder, dessa vez pela via do voto.

Após a vitória no primeiro turno do candidato da extrema-direita, José Antônio Kast, acendeu o sinal amarelo no Chile. Se confirmada na segunda rodada, o Chile estaria diante de uma reação termidoriana aos excessos das jornadas de 2019. Elas criaram no país um clima de conflagração nos últimos dois anos e levaram à erosão dos partidos tradicionais.

O primeiro grande desafio do novo presidente é pacificar o país, estabelecendo pontes com os setores das camadas médias, base de sustentação de Kast e sensível ao seu discurso da “restauração da ordem”. No passado, esses setores apoiaram e respaldaram o golpe militar de 1973 liderado por Pinochet.

Hoje os tempos são outros, não há mais a guerra-fria daqueles tempos, o Chile amadureceu e a vitória de Boric foi insofismável, com maioria absoluta dos votos válidos e com a maior votação de um presidente em todos os tempos. Bem diferente da eleição de Salvador Allende, que, por não conseguir maioria absoluta em uma eleição de turno único, necessitou ter sua vitória confirmada pelo Congresso chileno.

Nem por isso Gabriel Boric terá vida fácil. Vai governar com um parlamento no qual não conta com a maioria e a direita tem forte peso. O sucesso de seu governo dependerá diretamente de sua capacidade de construir maioria por meio de amplo consenso e de reconstruir a coesão nacional, esgarçada por mais de dois anos de turbulências sociais.

O vizinho Peru deve servir de alerta. Sem maioria no parlamento do seu país, o novo presidente peruano, Pedro Castilho, vive uma crise sem fim, apesar de seu governo ter apenas seis meses. Castillo teve de moderar sua agenda, mas com isso perdeu apoio do seu próprio partido.

São remotas as chances do mesmo acontecer no Chile. Até porque Boric teve a sabedoria de, no segundo turno, moderar seu discurso e se conectar com os partidos da antiga Concertacion – Partido Socialista e Partido Democrático Cristão, movimentando-se em direção ao centro. Trocou a frase “companheiros e companheiras”, com a qual iniciava seus discursos, por “chilenos e chilenas”.

A prova dos nove, contudo, será a composição do seu governo. A governabilidade recomenda um ministério de ampla coalisão, com a incorporação dos partidos do centro. Não apenas o socialista, mas a Democracia Cristã e outros.

Boric não tem experiência administrativa e as duas forças de sua coligação – Frente Ampla e Partido Comunista – tem poucos quadros com experiência de gestão pública. Até para gerir a máquina do Estado, necessita incorporar quadros formados nos anos em que o Chile foi governado pela Concertacion.

Sua vitória deve-se muito a ter dado ênfase ao que é comum à esmagadora maioria dos chilenos. Não abriu mão das bandeiras identitárias, mas elas perderam peso no segundo turno.

Seu foco principal foram a segurança (um tema sensível às camadas médias), imigrações desordenadas, crescimento econômico, acesso universal à saúde, pensões e aposentadorias, meio ambiente e ensino público e gratuito, inclusive no ensino superior.

Em vez de pregar transformações profundas, como defendia no primeiro turno, se comprometeu em realizar as mudanças pontuais que o Chile necessita. E ao se aproximar de Michelle Bachellet passou a ter como um de seus mantras a responsabilidade fiscal. Diante da reação negativa do mercado à sua eleição – dólar disparou e bolsa despencou – o novo presidente deu uma declaração sensata, prometendo realizar as reformas estruturais passo a passo e afirmando seu “compromisso firme com a convergência fiscal”

O Gabriel Boric vitorioso nas urnas está mais próximo de uma esquerda reformista e moderna do que o terceiro mundismo e antiamericanismo daquela velha esquerda latinoamericana bem conhecida por aqui. Boric está mais para a socialdemocracia europeia e menos para Cuba.

Um outro divisor de águas em relação a essa esquerda é sua posição frente às ditaduras da Nicarágua e Venezuela. Ao contrário de Lula, condena o regime ditatorial dos dois países.

Gabriel Boric vai governar um país inteiramente diferente da época de Allende. Sua economia se diversificou, não depende mais da exploração do cobre e outros minérios. O país tem acordos bilaterais que possibilitaram a diversificação de sua pauta de exportação e um forte incremento do turismo. Nos últimos 30 anos sua economia cresceu de forma sustentada e houve uma redução expressiva da pobreza

Os chilenos são um povo de uma cultura democrática fortemente enraizada. Essa cultura os levou a dizer não pela segunda vez ao pinochetismo, para que esse fantasma não paire sobre suas cabeças.

O novo presidente é um jovem de 35 anos e com ele ascende uma geração de lideranças estudantis das manifestações de 2011, agora amadurecida pelo tempo. Com sua vitória, os Andes são varridos por um sopro de otimismo.

Hubert Alquéres é diretor do Colégio Bandeirantes e membro da Academia Paulista de Educação e da Câmara Brasileira do Livro.

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