Política de reforma agrária é insuficiente para sustento de assentados, indica pesquisa
Uma pesquisa da CGU (Controladoria Geral da União) sobre a efetividade das políticas de reforma agrária do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) apontou que uma parte significativa das famílias assentadas não consegue tirar seu sustento da produção agropecuária, mesmo após anos de assentamento.
O levantamento ouviu percepções de 507 famílias de 57 assentamentos espalhados pelo país. No total, 73% disseram que a renda da produção do lote é insuficiente para a subsistência. Elas dependem de outras fontes, como aposentadorias e programas sociais.
Ainda que os números do relatório não tenham rigor estatístico, jogam luz sobre gargalos da reforma agrária.
“A gente pode questionar a metodologia, seleção, aleatoriedade, mas o fato é [que o relatório] está baseado em números que nos falam algumas coisas, que estão diretamente ligados à ausência das políticas de implementação da reforma agrária”, afirma Ceres Hadich, da direção nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
Servidor do Incra e autor do estudo “Estabelecimentos da reforma agrária no Censo Agropecuário 2017”, Vicente Marques identificou que a produção agropecuária representou, em média, 69% da renda das famílias assentadas, que era de R$ 19,6 mil por ano —o valor não inclui o que é produzido para consumo.
“O estudo mostrou uma grande desigualdade dos assentamentos entre as unidades da federação, dentro de uma mesma unidade e entre os 22 tipos de assentamento existentes”, explica. No Piauí, por exemplo, só 33% da renda de uma família, em média, vinha da produção.
Isso também foi apontado pela CGU como um alerta. De todas as 84 famílias entrevistadas pelo órgão na Bahia e no Distrito Federal, só uma disse que a renda da produção era suficiente para subsistência.
“Se não há implementação de políticas para a reforma agrária, o resultado de fato é esse. Só a terra, a regularização ou a distribuição não são suficientes para que a gente alcance um resultado efetivo de reforma agrária”, diz Ceres, do MST.
Dados do Incra apontam para pouco mais de 9.500 assentamentos no país, com cerca de 1 milhão de famílias assentadas. Mas só 6% deles estão “consolidados”, o que ocorre a partir de diversas ações, como infraestrutura, créditos produtivos, educação no campo, regularização ambiental e titulação.
O orçamento federal deste ano reserva R$ 335,3 milhões para ações finalísticas de consolidação.
“Os desafios são muitos, especialmente em função de um orçamento exíguo herdado do governo anterior”, afirmou o Incra em nota. “O objetivo é, se não colocar fim, aplacar distorções, ocasionadas, em especial, no período de 2018 a 2022, quando o PNRA [Programa Nacional de Reforma Agrária] passou por inúmeros revezes, sendo praticamente estagnado.”
A pesquisa da CGU, feita entre 2018 e 2023, identificou taxa alta de lotes com demarcação em oito dos nove entes federativos pesquisados, mas citou no relatório que “grande parte dos entrevistados indicou como principal anseio a titulação definitiva e/ou registro cartorial, com o objetivo de aumentar a segurança jurídica e legal do domínio do bem.”
A titulação é usualmente apontada como condição para o maior acesso a crédito rural. O pesquisador da reforma agrária Mauro del Grossi, professor da UnB (Universidade de Brasília), diz que é preciso dar outro passo antes.
“Precisamos de assistência técnica continuada para os assentados. Crédito sem orientação técnica aumenta consideravelmente as chances de fracasso e endividamento, especialmente com o aumento da frequência de eventos climáticos extremos”, diz.
O especialista aponta que o período analisado pela CGU, que compreende principalmente o governo Jair Bolsonaro (PL), foi marcado pelo desmonte de programas que dão prioridade às famílias assentadas para as compras governamentais, como o PAA (Aquisição de Alimentos) e o PNAE (Alimentação Escolar). A garantia de comercialização a preços compensadores minimiza o risco de inadimplência e de endividamento.
De 2019 a 2023, foram contratadas, em média, 38 mil operações de crédito pelo Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) por famílias assentadas. O Censo Agropecuário 2017 apontou que o país tinha cerca de 557 estabelecimentos da reforma agrária —essa foi a última edição do levantamento.
A maior parte desses assentamentos teve origem em processos organizados pelo MST ao longo de quatro décadas.
“A terra não é o suficiente”, reafirma Ceres Hadich, do MST. “É preciso pensar políticas para o desenvolvimento individual das famílias, mas também políticas que impactam na comunidade. Acesso a equipamentos, cultura, educação, saúde, cooperativas, tudo se conecta nessa interpretação de que não é só a terra.”
A pesquisa da CGU priorizou assentamentos criados após o ano 2000, com mais de 50 famílias residentes, em municípios de alta representatividade no âmbito da reforma agrária e classificados em estágio mais adiantado de consolidação. O estudo observou que uma pobre infraestrutura cerca os assentamentos de forma geral, ainda que o acesso à energia elétrica seja difundido.
Dos entrevistados, 48% relataram dificuldade de acesso a equipamentos de saúde.
Del Grossi cita que a maior parte dos assentamentos (87%) está localizada em cidades com baixo ou muito baixo desenvolvimento humano, ou com alta e muito alta vulnerabilidade social (53%).
“Esse aspecto é importante porque o contexto em que estão inseridos importa: não se trata de assentamentos improdutivos ao lado de propriedades prósperas, mas de assentamentos relativamente pobres semelhantes aos seus vizinhos, e com as mesmas carências da região onde estão inseridos”.