Pouco importa se é milícia ou tráfico, crime age livre no Rio, diz sociólogo

0

Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. Foto: Estadão

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O assassinato de três médicos em um quiosque na Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio de Janeiro, reflete uma estrutura de lucro político e econômico a partir do controle armado há pelo menos 60 anos. É por causa disso que a autoria do crime – se por uma milícia ou por traficantes – não faz muita diferença para o sociólogo José Cláudio Souza Alves.

Segundo o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, que estuda grupos armados há décadas, as mortes aconteceram em um território de organizações que só conseguiram crescer à sombra do Estado.

Um eventual desfecho com a morte dos autores dos disparos, se comprovado, é uma resposta que serve, de acordo com Alves, para interromper debates e investigações sobre a violência cotidiana em cidades brasileiras.

“É provável que esse caso fique restrito ao sofrimento das famílias e às mortes de suspeitos”, afirma o pesquisador. “Não se debate a conexão política, seja local ou nacional.”

*

*Folha – O que essas mortes dizem sobre a violência no Rio hoje?*

*José Cláudio Souza Alves -* O Rio de Janeiro tem uma tradição de convivência de grupos armados conectados à estrutura de segurança pública. O assassinato na Barra da Tijuca é fruto disso. Tráfico e milícia têm suas disputas entre si, e em cada grupo armado há presença, conivência, ganho e interesses de agentes públicos. Não só do Executivo, sobretudo da segurança pública, mas do Judiciário e do Legislativo. Esses grupos continuarão funcionando.

*Folha – No que esse caso é diferente do assassinato da ex-vereadora Marielle Franco, em 2018?*

*José Cláudio Souza Alves -* Pareceu algo apressado. Antes das investigações apontarem para o Comando Vermelho, tive uma hipótese de que poderia ser um grupo miliciano que se valeu de mão de obra civil. Contrata-se um grupo mais frágil, por ser mais barato e ter domínio da região. Se forem descobertos, viram boi de piranha. São presos, processados ou assassinados, e fica por isso mesmo. É diferente do caso da Marielle, que envolveu o Escritório do Crime, muito mais sofisticado e articulado na estrutura policial, com um lastro de atuação mais organizado e de difícil identificação.

*Folha – Uma linha de investigação é que um dos médicos foi confundido com um acusado de integrar milícia.*

*José Cláudio Souza Alves -* Isso não altera o que digo. Se houve equívoco, foi de um grupo armado dentro de um território em que ele opera com liberdade há muito tempo, estabelecendo limites territoriais e confronto com outros grupos. Não haveria essa atuação sem conivência e comprometimento da estrutura de segurança pública ali. Se é milícia ou tráfico, pouco importa.

*Folha – Por que?*

*José Cláudio Souza Alves -* Tráfico e milícia se articulam, têm negócios e interesses comuns. Se confrontam, claro, as mortes são resultado dessas disputas. Notícias mostram que há suspeita de ter sido a mando do Comando Vermelho, ali é uma área em confronto. Mas se são grupos que estão ali há tempos, por que o Estado deixa rolar? Mortes são prejudiciais em parte, porque confrontos aquecem o mercado ilegal. Sobem os preços cobrados por segurança, arrego, suborno para o tráfico funcionar, gatonet e gás.

*Folha – Mas o caso gerou pressão por investigações.*

*José Cláudio Souza Alves -* Obriga, sim, o Estado a fazer prisão e identificação de pessoas, o que pode ser que não ocorra, porque mataram quatro pessoas. Diria-se que o problema já está resolvido, pela lógica do ?bandido bom é bandido morto?. Especialmente porque há muitas peças, como num jogo de xadrez. Além de milicianos, temos políticos locais e nacionais, como o [Jair] Bolsonaro, e o acusado de matar a Marielle, Ronnie Lessa. Mortes como as desses médicos serviriam para jogar luz sobre o tabuleiro, sobre como essas conexões se perpetuam. Mas é o contrário: vão fechar o foco na casa do tráfico e na perda dos três médicos. Não se debate a conexão política, seja local ou nacional.

*Folha – Há uma mudança no perfil desses grupos armados, especialmente da milícia?*

*José Cláudio Souza Alves -* Há uma sofisticação, há seis ou sete décadas, porque vários grupos políticos se beneficiaram do controle armado, territorial, econômico e eleitoral desses grupos de extermínio. Se Lula (PT) transformou a mulher de um político com vínculos com milicianos em ministra do Turismo, é porque enxerga vantagem na relação com esses grupos.

O que se prende hoje são os pés-de-chumbo, a mão de obra fornecida pela miséria e a desigualdade, mas o governador Claudio Castro (PL) chamar de combate é balela. Em certo momento, o secretário de Polícia Civil do Rio de Janeiro era um envolvido com grupos armados e jogo do bicho. É a prova dessas conexões.

* Folha – Mas como elas funcionam na prática?*

*José Cláudio Souza Alves -* Vou dar o exemplo de Wellington Braga da Silva, o Ecko, apontado como líder da principal milícia do Rio de Janeiro. A morte a um ano das eleições de 2022 fragmentou o grupo e foi o equivalente a abrir um edital. Aquele dinheiro ilegal movimentado desembocaria na campanha. Só se faz campanha onde os grupos permitem, só se mostra benfeitoria de um determinado candidato. Não é um mercado só de produtos, mas de vínculos políticos.

Na Baixada Fluminense, funcionários terceirizados começam a ser trocados um ano antes das eleições. Quem está fechado com o grupo dominante, fica. Isso vale para organizações sociais de hospitais, contratados de educação, e também emissão de licenças ambientais nas prefeituras, tudo é checado.

*Folha – Para além do Rio, o que a repercussão dessas mortes significa para o resto do país?*

*José Cláudio Souza Alves -* É provável que esse caso fique restrito ao sofrimento das famílias e às mortes de suspeitos. Mas é importante dizer que há um destaque para o fato de os médicos serem inocentes. Se fossem traficantes ou milicianos mortos, deveriam estar sujeitos às mesmas leis, são tão humanos quanto eu e você. Mas essa história de bandido bom é bandido morto permite que se continue matando aos baldes e ganhando dinheiro com isso.

*Folha – A participação da Polícia Federal e uma eventual federalização ajudariam?*

*José Cláudio Souza Alves -* Mas vão federalizar cada assassinato? Isso, por si, não é solução. Não se toca na estrutura do Rio de Janeiro por interesse político. A solução para este tipo de problema seria criar uma estrutura de segurança pública autônoma, ligada a outro projeto de Brasil. Que político vai fazer isso hoje?

RAIO-X

José Cláudio Souza Alves, 61

É professor titular do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Doutor em sociologia pela USP, é autor de “Dos Barões Ao Extermínio – Uma História Da Violência Na Baixada Fluminense”

About Author

Deixe um comentário...