Preso por mais de 2 anos, homem é inocentado após STJ apontar falhas em reconhecimento

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Foto: Pixabay

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) absolveu e libertou, após 2 anos e 2 meses preso, um homem que havia sido condenado pelo assalto a uma farmácia de São Paulo. A condenação havia se baseado somente em um reconhecimento das características físicas do então suspeito, por parte de uma vítima, feito sem obedecer aos procedimentos legais.

Na decisão, o STJ aplicou o entendimento do próprio tribunal, firmado em 2020, que exige critérios mais precisos para condenação com base em reconhecimento de características físicas (entenda mais abaixo).

Na última sexta-feira (1º), Lucas Santos de Medeiros, de 25 anos, deixou a prisão em Mongaguá (SP) e foi recebido por sua mãe, Ione dos Santos, de 39 anos.

“A prisão foi um rebuliço na minha vida. Tive que sair do meu trabalho, não vi meu filho crescer, eu não vi a minha filha nascer”, diz Medeiros, pai de um menino de 5 anos e de uma menina de 2.

“O pior momento foi quando eles [policiais] invadiram a minha casa, no dia da prisão. É muito constrangimento, sua família aqui e você saber que está sendo preso por uma coisa que você não fez”, conta.

Acusado de integrar uma quadrilha que fazia roubos em série em farmácias da zona norte de São Paulo, Lucas foi condenado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo a uma pena de 8 anos e 10 meses de prisão por um assalto a mão armada registrado em julho de 2019 em uma farmácia da Vila Maria.

O rapaz teve ajuda da ONG Innocence Project Brasil, que se dedica a reparar erros judiciários após a conclusão dos processos. O trabalho da entidade já foi destacado em uma série do Fantástico.

Com base no entendimento do STJ fixado em 2020, a entidade pediu ao tribunal um habeas corpus para anular o procedimento que levou ao reconhecimento de Medeiros e absolvê-lo. O pedido foi atendido pelo ministro Messod Azulay Neto no último dia 26.

Novas regras

Conforme o atual entendimento do STJ sobre o tema, os reconhecimentos devem obrigatoriamente seguir os ritos previstos no artigo 226 do Código de Processo Penal:

  1. A pessoa que for fazer o reconhecimento (vítima ou testemunha) precisa descrever previamente as características físicas do criminoso;
  2. Em seguida, o suspeito deve ser colocado ao lado de pessoas que tenham semelhança com ele, para evitar induzir a erro a vítima ou a testemunha.

“Até esse entendimento do STJ, o que vigorava é que o reconhecimento de pessoas não precisava seguir as exigências do Código de Processo Penal, que eram tidas como meras recomendações. Uma condenação poderia se basear exclusivamente no reconhecimento, mesmo que as exigências do código não tivessem sido seguidas. Isso causava inúmeras condenações de pessoas inocentes”, diz o advogado Rafael Tucherman, do Innocence Project.

Para Tucherman, o precedente do STF foi “revolucionário” ao estabelecer que as condenações não possam se basear exclusivamente no reconhecimento e que o ato não sirva como prova quando não seguir o rito previsto na lei.

Problemas no processo

No pedido apresentado ao STJ, a Innocence Brasil destacou problemas que identificou no processo, como:

  • A Polícia Civil de São Paulo apresentou um auto de reconhecimento que não estava assinado pela testemunha que fez o procedimento — um funcionário da farmácia assaltada. Ouvida pela Justiça, essa testemunha afirmou que não tinha feito o reconhecimento na delegacia;
  • Na fase judicial, mais de seis meses depois do crime, essa testemunha fez um novo procedimento e reconheceu Medeiros, mas não há registro de quem eram as pessoas que foram colocadas ao lado dele, o que não permite saber se eram parecidas com ele;
  • A única razão pela qual Medeiros foi incluído no reconhecimento é que ele era amigo em redes sociais de um dos criminosos que, de fato, fazia parte da quadrilha. A polícia chegou até Medeiros somente pela rede social, sem outras provas;
  • O atendente da farmácia disse que o criminoso que praticou o assalto era negro, e Medeiros é branco — o que, para o Innocence, “já deveria tê-lo excluído do rol dos suspeitos a serem reconhecidos”;
  • A investigação não buscou as imagens das câmeras de segurança da farmácia que registraram o roubo;
  • Um réu que comprovadamente praticou o assalto afirmou que Medeiros não estava junto. Além disso, um policial civil também afirmou à Justiça que a investigação não tinha provas contra o jovem;

“Nesse panorama, em que não houve nem reconhecimento fotográfico e nem reconhecimento pessoal com obediência aos ditames do art. 226 do CPP [Código de Processo Penal]; no qual o corréu confesso isentou o recorrente [Medeiros] quanto ao cometimento do crime; no qual uma das vítimas teve dúvidas ao apontar o recorrente como autor do fato; […] imperiosa a conclusão de que inexistem elementos probatórios válidos e aptos a respaldar a condenação”, afirmou o ministro Azulay Neto em sua decisão.

Em nota, a Polícia Civil de São Paulo afirmou que a prisão de Medeiros “foi realizada dentro dos critérios legais”.

“O caso foi encaminhado para análise do Ministério Público e Poder Judiciário que mantiveram a sentença. Quanto à soltura do mesmo, a Secretaria de Segurança Pública reforça que não comenta decisões judiciais.”

Evitar erros futuros

Tucherman afirma que o caso de Medeiros mostra a importância de a polícia e a defesa buscarem provas de inocência desde o início da investigação.

“Havia imagens de câmera de segurança que a polícia não foi atrás e que se perderam. Muito possivelmente essas imagens já seriam suficientes para mostrar que aquele assaltante não era o Lucas”, diz o advogado.

“Uma prova dependente da memória, como o reconhecimento, é muito falha, porque a nossa memória é sujeita a equívocos. A chance de os equívocos acontecerem aumenta muito quando o procedimento é mal feito.”

Livre, Medeiros diz que voltará ao emprego que deixou quando foi preso, em janeiro de 2022. Ele era entregador de artigos para festas em Pirituba, na Zona Norte de São Paulo.

“Já falei com meu patrão, ele falou que já posso ir lá nesta semana, que minha vaga sempre vai estar lá. Vou voltar para o que eu fazia antes, que é o que gosto de fazer”, afirma.

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