‘Sem match’: como os apps de relacionamento viraram assunto sério nos consultórios de psicologia e psiquiatria

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Foto: Pixabay

“Namorar hoje é mais difícil do que nunca”, teorizou a psicóloga norte-americana e expert em relacionamentos Logan Ury em seu livro “Como encontrar seu par”, lançado no Brasil pela Editora Sextante. Uma das razões para a “sofrência” que significa engatar um romance nos dias de hoje está na dominação dos apps de paquera, cujo funcionamento, alertam psicólogos brasileiros, facilita uma profusão de desconfortos — eles dizem que dificuldade em lidar com o outro por meio de programas do tipo e pela tela do celular tornou-se um assunto recorrente nos consultórios de análise, terapia e de psiquiatria.

Especialistas ouvidos pelo jornal GLOBO dizem que já estão familiarizados com relatos de pessoas que desistiram não só dos aplicativos, mas do amor em si, por conta de alvos de interesse que ignoram as mensagens, ou pelas criaturas que somem abruptamente e sem explicação, após só dois encontros. O temido ghosting. Há ainda outros fatores: figuras que se tornam insistentes após uma recusa, ou até imagens sensuais (não solicitadas) encaminhadas sem muita razão aparente. Tudo corrobora para que o aplicativo apareça nas sessões como fonte de bastante frustração.

— Todo mundo quer tudo muito rápido. Os aplicativos estão fazendo as pessoas se desiludirem muito com o amor até porque estão usando o serviço com a percepção errada. É preciso entender melhor o app para não se frustrar. Do contrário, é possível que isso leve a um processo depressivo — afirma a psicóloga clínica Sandra Rodrigues, que atua em São Paulo.

Sandra explica que é fundamental notar que a ampla oferta de perfis dentro desses aplicativos é, na verdade, um aumento de possibilidades. Isso significa que a busca por um perfil específico, de alguém que dê liga com seus gostos e projetos, torna-se mais desafiadora. Para encontrar um parceiro que interesse, explica, é preciso garimpar entre o mundaréu de pessoas que aparecem na tela. Nessa procura há, inclusive, um recorte importante de gênero: nos consultórios elas são quem mais falam sobre desilusões em não encontrar uma figura que pareça viável para construir um relacionamento.

— Vejo em pacientes que chegam aqui abalados por esse cenário uma desesperança, uma crença de que não vão encontrar alguém. Não posso determinar qual seria, afinal, o jeito correto de usar o app. Mas digo sempre que é preciso cuidar bastante da autoestima. E que a reciprocidade, fundamental para relacionamentos na vida real, deve ocorrer também no virtual.

Carmita Abdo, psiquiatra e sexóloga da Universidade de São Paulo (USP), diz que em alguns casos esses apps acabam aflorando o que há de pior em algumas pessoas. Antes, diz a especialista, o maior medo é que o outro inventasse o perfil. Agora os conflitos, ela diz, são mais complexos do que antes.

— Antes, as pessoas criavam personagens praticamente fictícios. E acontecia mais com os homens, embora não fosse uma exclusividade deles. Havia casos de pessoas que inventavam versões falsas de si mesmo no âmbito financeiro e até sociocultural. E isso era percebido no contato real — afirma. — Agora percebemos em consultório uma outra realidade. O que se comenta é que, de repente, aquele relacionamento acaba, desaparece. As pessoas se tornam fantasmas. Não faz contato, não responde. Simplesmente a pessoa não está mais presente. É uma queixa muito recorrente das mulheres.

O psicólogo comportamental Janiel Felix também já lidou com casos delicados em consultas. Em um dos episódios, uma mulher recém-separada passou a trocar mensagens com um homem muito atencioso que parecia perfeito às suas demandas, mas que trazia muitos empecilhos para realizar o encontro real, cara a cara. O que era bastante frustrante para a paciente, que queria tirar o “match” do ambiente virtual.

— Ele falava tudo o que ela queria ouvir. E isso na vida real não existe, cada um tem sua singularidade, sua particularidade. Vamos encontrar pessoas compatíveis e não exatamente iguais — pondera o especialista.

O caso se desenrolou por longos meses, sem que o rapaz decidisse sair do conforto das telas. Havia a dúvida, inclusive, se tratava-se de uma pessoa real (e não um perfil falso).

— Ela decidiu desconstruir a ideia. Trabalhamos para mostrar que o vínculo entre os dois não existia mais e que não poderia ser acessado novamente por ele.

Na comunidade LGBTQIA+ — que acaba contando, em alguns casos, com aplicativos voltados para orientações sexuais específicas — queixas também aparecem. É o que conta Lucas de Vito, psicólogo à frente da clínica “LGBT+ com local”, dedicada a esse público.

— Antigamente, as pessoas da comunidade tinham que se encontrar em bares ou ruas muito específicas, por vezes lugares marginalizados. Hoje em dia, porém, isso ganha mais luz no aplicativo, que passa a ser considerado um ambiente teoricamente seguro — afirma. — A grande questão é que os aplicativos se tornaram um ponto central das relações das pessoas LGBTQIA+, escutamos muita, mas muita mesmo, reclamações ligadas a padrões de beleza.

Em um dos casos, conta Lucas, um paciente relatou que estava em busca de novos relacionamentos após uma separação. Procurou a ajuda de um app, mas no ambiente virtual, foi diversas vezes confrontado sobre sua forma física. O caso acabou afetando sua saúde mental de maneira bastante profunda.

— Ele chegou bem perto de desenvolver um transtorno alimentar, procurou procedimentos para aumento de pênis. Foi tudo muito intenso. Tudo para se encaixar — afirma.

Procurados, os apps dizem que adotam políticas para colaborar com o bem-estar dos usuários. O Bumble, por exemplo disse que sua missão é “criar um mundo onde todos os relacionamentos sejam saudáveis e equitativos”. O serviço também enumerou medidas de segurança que toma para evitar bullying, ofensas e agressões. O Grindr, mais utilizado por homens gays e pessoas trans, afirmou que tem uma “política de tolerância zero para discriminação, assédio e comportamento abusivo”. Ainda diz que está comprometido “em criar um ambiente seguro e autêntico livre de contas prejudiciais e falsas, golpistas e spam”. O app tem protocolos para detectar e remover contas que ignorem o código de conduta e um time de moderação na América Latina.

Superficialidade

Embora possam, definitivamente, ser um caldeirão para experiências traumáticas e ansiedade, os aplicativos não são descartados totalmente dentro dos consultórios. Para muitos, explicam os psicólogos, analistas e psiquiatras, trata-se de uma ferramenta útil. Basta que se compreenda seu uso, calibrando bastante as expectativas e de olho na segurança.

A psicanalista e professora da Casa do Saber, Carol Tilkian, por exemplo, sugere que a chave para sofrer menos é deixar de agir de forma “ansiosa e autocentrada” nas dinâmicas de paquera virtual. E explica o que isso quer dizer.

— Às vezes as pessoas reclamam que a conversa não engaja, mas não entendem que o outro tem uma agenda diferente da própria, que está ocupado. O aplicativo está gamificado, estão viciando mulheres e homens em gratificação instantânea por meio do like— afirma.

É urgente, ela diz, dar tempo e condições para conhecer o outro, sem esperar o imediatismo deflagrado pelas redes. E, embora pareça óbvio, verbalizar claramente o que se espera daquela interação é necessário (mas nem sempre feito).

— Há a expectativa que a pessoa preencha todas as expectativas. Por vezes, ao receber o convite para o sexo, pode ser possível dizer que não, que preferia sair para jantar primeiro. O movimento atual, porém, é automaticamente bloquear e considerar aquela pessoa (que convidou para transar) uma babaca. Simplesmente reclamar não vai resolver — conclui Carol.

Há outra valiosa estratégia para criar relações que possam prosperar além da dinâmica do match: colocar limites.

— Se você ver algo, diga. Se uma pessoa disse que te ligaria sexta, mas só apareceu por mensagem na segunda, fingindo que nada aconteceu, há duas opções: deixar para lá ou comentar que esperou a ligação na sexta e ficou imaginando se aquela pessoa havia sido abduzida por aliens. E demonstrar que não é ok dizer que vai ligar e não fazer— diz a psicoterapeuta Terri Cole, autora do livro “Seja dona dos seus limites”, lançado no Brasil também pela editora Sextante. — Não podemos deixar maus comportamentos passarem despercebidos. Isso é uma forma diferente de colocar limites. Além disso, seja sincero em seu perfil. Não há vergonha de ser verdadeiro e dizer exatamente o que você procura.

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