Quase que um consenso, a educação sempre é tida como um ponto primordial para qualquer avanço das sociedades. Uma formação de qualidade é responsável não só por permitir que o indivíduo tenha acesso às oportunidades, mas que o desenvolvimento cidadão atue de modo que ele esteja pronto para oferecer seu melhor ao coletivo.
Mas de qual educação se fala quando o assunto é ‘educação de qualidade’? A resposta, por vezes, dependerá de onde se fala. Para os moradores do campo, das áreas distantes dos grandes centros, a educação pode ser fagulha de esperança para uma vida que garanta as benesses da Zona Rural, sem perder os direitos e os acessos de quem vive próximo às capitais.
Essa fagulha se acendeu em 2005 no Brejo paraibano. Na cidade de Bananeiras, a pouco mais de 120 quilômetros de distância de João Pessoa, as Irmãs do Carmelo Sagrado Coração de Jesus e Madre Teresa, popularmente conhecidas como Irmãs Carmelitas, se inquietaram ao perceber que muitos homens e mulheres do campo não tinham tido acesso à alfabetização.
Nos fundos de uma casa simples, morada de um lavrador, surgiu a Escola Nossa Senhora do Carmo. O projeto social, de início, tinha como foco alfabetizar camponeses da região. Mas não era suficiente. O analfabetismo costumava se perpetuar e não fazia sentido garantir educação aos pais e desassistir os filhos, e foi assim que o objetivo se estendeu. As crianças passaram a integrar a rede de educandos beneficiados pela educação das Irmãs. O projeto hoje tem, inclusive, reconhecimento internacional..
A professora Leila Sarmento estava lá, entre os ramos dos sonhos que ali nasciam. Doutora em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a atual gestora da escola era, na época, um dos braços que colocavam em prática as idealizações das Irmãs, que por serem de clausura, não poderiam sair de onde viviam para interagir e educar os alunos. Desde o início Leila nutria a inquietação diante da possibilidade de, através da oportunidade que ali surgia, construir um novo modelo de educação, distante dos moldes tradicionais que conhecia e percebia muitas falhas.
“A partir desse desejo de fazer uma escola nova, Paulo Freire foi e ainda é nosso maior referencial, com essa proposta de educar com os sujeitos, sempre levando em conta os fatores sociais que cercam a vida de todos”, conta Leila.
Em 2007 o sonho começou a ganhar estrutura física, através de doações e recursos populares. A construção foi um processo, e até 2015 se manteve sob lideranças das Irmãs Carmelitas. Os olhos da Igreja Católica não enxergavam com bom grado um projeto social liderado por quem era de clausura, e na escolha de ser fiel à fé, elas decidiram fechar a escola.
No entanto, a comunidade não se via sem o projeto, e foi a crença de uma construção alternativa de saberes que levou todos a se reunirem para seguir com a iniciativa. Mas o caminho seria outro. Nasceria, ali, a ‘Escola dos Nossos Sonhos’, uma escola comunitária na busca de uma jornada sem hierarquias, tendo a subjetividade dos educandos como centro.
O que você quer aprender?
O primeiro passo era o coração da pessoa humana. Longe da rigidez, acreditavam que os afetos norteiam sonhos e desejos, e que levar tudo isso em conta facilitaria o querer das crianças pelo aprendizado. De acordo com Leila Sarmento, o ponto fortalecedor do projeto, até hoje, é dividir as decisões com o coletivo,“Cada passo é dado através de assembleias e colegiados, onde além da equipe de voluntários, os pais e integrantes da comunidade acrescentam ideias e sugerem mudanças”, explica a gestora.
Mas havia, ainda, um incômodo.
“Inquietava-nos ver a escola com suas salas de aula cheias de carteiras enfileiradas, com seus alunos a olhar o tempo inteiro para um professor à sua frente, ditando padrões, impondo saberes, em sua maioria desligados da realidade dos educandos e com uma avaliação de aprendizagem mais excludente do que formativa.”
Foi essa angústia que levou a equipe pedagógica a testar um modelo inovador na região. Nesse novo ciclo, a ‘Escola dos Nossos Sonhos’ não optaria mais por séries. A ideia era integrar os estudantes, incentivar os trabalhos coletivos e as trocas para além das quatro paredes das salas de aula, para além das provas e das notas por rendimento.
E então, as salas se transformaram em espaços coletivos de aprendizagem, utilizados pelos educandos através das necessidades de cada um, os professores se transformaram em tutores e mediadores de projetos, e os alunos foram desafiados a serem autônomos e exercerem sua liberdade.
Entre as crianças, a autonomia é trabalhada como etapa primordial. “O que você tem interesse? o que você gostaria de aprender na escola?”, perguntas como essa são comuns, e desde cedo a opinião dos menores é levada em conta e valorizada na construção dos saberes. Sem ementa antiga e inalterada, os cronogramas vão sendo montados de acordo com cada grupo.
Longe do improviso, a equipe da escola realiza, frequentemente, ciclos de estudos com foco na capacitação para esse modelo educacional. Essa rotina permite que novas atividades e ações sejam sempre incorporadas. E Leila Sarmento garante que esse sonho não surgiu do nada, mas segundo muitas referências de outras escolas que já realizam modelo similares, e encontraram êxito, principalmente fora do Brasil.
“Muitas vezes, sentimos que nosso maior esforço é por romper com a forma pela qual fomos educados, cuidar para que nossa nova prática não seja permeada de costumes velhos”, desabafa Leila.
O método principal é reunir os saberes através de projetos de pesquisa, o interesse dos alunos guia sobre quais conhecimentos eles vão se debruçar, através de planos diários e roteiros periódicos. Essa liberdade caminha, lado a lado, com as habilidades exigidas pelas diretrizes da Base Comum Curricular, estipuladas pelo Ministério da Educação. O método não está desvinculado do aprendizado regular que os estudantes precisam ter para garantir que serão certificados ao fim dos estudos.
Os educandos contam com a colaboração dos tutores, é esse grupo de homens e mulheres, em parte voluntários, que orienta as atividades. Após o momento de orientação, os educandos ficam livres para executar as pesquisas, seja no refeitório, na sombra de uma árvore ou no pátio.
Tutoria como um ‘lecionar que acolhe’
A vontade de fazer a diferença é capaz de cooptar vários sonhadores com um propósito em comum, e foi assim com Aline Miranda. Ainda em 2012 a pedagoga passou a fazer parte da escola. Nascida e criada no campo, sempre se aproximou de vertentes educacionais que compreendem as particularidades do lugar. Aline defende a educação comunitária como quem defende uma vida de lutas.
Exerce na escola a função de tutoria, a escolha da nomenclatura tem relação com os caminhos abordados no dia a dia. Sem aulas, as orientações são individuais, e os momentos coletivos são direcionados para as interações entre os estudantes, com uma mediação dos profissionais que se veem como integrantes do processo de formação, sem serem totalmente responsáveis por ele.
De acordo com a tutora Aline, “tudo é construído por todos, nada de cima para baixo. Acredito que essa educação promove o desenvolvimento de todos através de uma proposta transformadora. Os educandos adquirem consciência da responsabilidade que têm pelo crescimento pessoal e socioambiental.”
Foi essa aposta de mudança que levou Aline a manter os próprios filhos na escola em que é voluntária. Para ela, a principal diferença da metodologia é tratar de cada detalhe como um fruto do coletivo, com foco na comunidade. A tutora explica que desde as decisões, até os resultados, tudo envolve a lógica grupal, “eles se sentem bem, o ensino se torna mais prazeroso e o resultado é maravilhoso”, afirma.
Hoje com 230 educandos, com a chegada da pandemia, apesar da tristeza em ter que levar as atividades para casa, a escola conseguiu se adaptar. Com a metodologia de ‘Fichas de Interesse’, as atividades foram realizadas com os familiares e acompanhadas, à distância, pelos tutores. Aline acredita que isso foi possível graças à autonomia já trabalhada com os educandos. O que não significa que a socialização não fez falta.
As aulas presenciais voltaram em julho de 2021, e aos poucos as atividades foram retornando, com o privilégio dos ambientes abertos.
A escola comunitária de Bananeiras faz parte das iniciativas espalhadas pelo Brasil que tem a educação popular como ponto norteador. Até a década de 1940 o conceito era utilizado para falar de uma educação que pudesse chegar a todos os públicos, que incluísse, por exemplo, povos do campo e de cidades mais distantes dos grandes centros.
Com a popularização dos diálogos propostos pelo intelectual Paulo Freire, em meados de 1960, novas formulações foram criadas em torno do que seria a defesa da educação popular no Brasil. As discussões se voltaram, então, para construções de saberes emancipatórios, que levasse aos povos minorizados, englobados como classes trabalhadoras, uma liberdade no processo de aquisição de conhecimento.
De acordo com o pesquisador da UFPB, José Francisco De Melo Neto, a educação popular tem sua teoria de conhecimento definido pela realidade. Uma pedagogia promotora do outro, com uma perspectiva política acompanhada de valores éticos como: justiça, respeito ao humano, solidariedade, diálogo em sua realização, buscando a emancipação e felicidade das pessoas.
Os projetos que seguem a linha freireana costumam destacar aspectos como humildade, respeito à diversidade e tolerância como pontos estruturantes do processo educacional.
Familiares como parte importante da jornada educacional
Através de reuniões periódicas, os familiares dos educandos fazem parte das decisões. Mas como a proposta é expandir para toda comunidade, não são apenas opiniões. Essas famílias ajudam em todo processo de evolução da escola. Não são poucas as iniciativas de melhorar, e essa foi uma das características observadas pela artesã Milena Ferreira dos Santos ao decidir matricular o filho Luan Renner.
O menino tinha 4 anos quando entrou para a ‘equipe dos sonhos’. Ainda em 2012, antes da reformulação, Milena confiou ao filho à iniciativa que prometia uma educação ampla e inclusiva. Não se arrependeu, fala do ambiente escolar na primeira pessoa do plural, chama de “nossa” a escola que fez a diferença na formação de Luan e no cotidiano da comunidade, e fará falta. Com tom saudoso, lamenta que aos 14 anos ele tenha que sair em busca de outro lugar, pois atingiu a idade limite.
“Temos o voluntariado, onde eu atuo com muito carinho na construção de uma escola melhor para comunidade. Tudo foi desenhado junto, pensado junto. É um lugar muito importante. Para mim é um orgulho falar de lá, e já fico com o coração apertado pela saída dele”, comenta a mãe.
Mas o sonho de Milena não terminou, o voluntariado seguirá para atender outras crianças, e esse bem ainda estará dentro de casa. Com um bebê de 4 meses, Milena pretende seguir cuidando da escola para que as condições sejam ainda melhores quando o segundo filho puder estudar lá.
“Nos projetos coletivos, um irmão desenhou a escola para o outro, eu acho isso muito bonito”.
Reconhecimento: Escola Transformadora
A partir das reformulações feitas em 2015, a ‘Escola dos Nossos Sonhos’ alçou voos maiores. O Ministério da Educação lançou, no mesmo ano, o edital Inovação e Criatividade em Educação Básica. Entre as mais de 600 iniciativas inscritas em todo país, a escola de Bananeiras recebeu o reconhecimento pelos novos valores propostos, e representou a Paraíba como uma das quatro experiências do estado certificadas pelo MEC em 2015.
Já em 2017 um passo mais largo foi dado, passaram a integrar a rede das Escolas Transformadoras do Mundo, certificada pelo Instituto Alana/Ashoka, estando no grupo de vinte e uma instituições brasileiras que detêm essa certificação, sendo a primeira a representar o estado da Paraíba.
Em 2019, veio mais uma oportunidade a nível global. O Escolas2030 é um programa global de pesquisa-ação que busca avaliar, desenvolver e disseminar boas práticas para a educação de qualidade de crianças e jovens.
A ‘Escola dos Nossos Sonhos’ é uma das 100 instituições brasileiras que integram o projeto espalhado em apenas 10 países. Dentro desse projeto ainda foi criado um grupo de Escolas-Polo, com 14 instituições para servir de referência às demais, e a escola paraibana faz parte.
Para Leila Sarmento, gestora da escola, os reconhecimentos apontam para um futuro possível “isso mostra que a construção coletiva é que traz bons resultados. Se educação é um processo de sujeitos ela não pode ser em mão única, mas em coletivo. Isso é o nosso diferencial”, certifica Leila.
As atividades seguem sendo possíveis através de benfeitorias e doações, contando com convênio municipal e estadual, que permite manter a folha de pagamento dos colaboradores. Muitas despesas são cobertas com a realização de rifas, brechós e empenho de toda comunidade. E foi essa mesma comunidade que se uniu para preencher papéis e materializar em desenhos quais eram os sonhos para a estrutura física da unidade.
As várias vontades construíram uma só planta arquitetônica, e é a partir do desenho em papel que eles têm construído, tijolo por tijolo, o sonho de uma estrutura que permita seguir com as atividades. Nunca foi cogitado transformar o projeto numa escola particular, onde tentassem manter os ideias, mas limitassem o acesso. Para a ‘Escola dos Nossos Sonhos’, só é comunidade se for aberto, se for para todos, com todos, até que a liberdade ultrapasse os campos de Bananeiras e se espalhe por todo lugar.