Sonhar a política: efetividade ou desilusão?

Brick House (2019), de Simone Leigh, e obras de Belkis Ayòn recepcionam o visitante da Bienal de Veneza na entrada do Arsenale [Foto ©Ela Bialkowska OK NO studio]
Por Mateus Nunes
Os conceitos de sonho e de política são extremamente atrelados na sociedade ocidental. As estruturas e dinâmicas de governo buscam, sobretudo, um ordenamento social harmônico, alcançando um estado utópico e sonhador que escapa da realidade do caos que parece ser inerente à existência humana. Escapar dessa desordem – que já é tomada como condição natural, quando não deveria – é uma promessa política, desde a ágora grega à propaganda eleitoral e as sessões televisionadas de câmaras.
Na contemporaneidade, podemos ressaltar o sonho como promessa política e ferramenta propagandística em vários momentos históricos. Na realidade estadunidense, o “American dream” é basal na Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, de 1776, com os princípios de direito “à vida, à liberdade, à propriedade e à busca de felicidade”. O indelével discurso de 28 de agosto de 1963 no Lincoln Memorial, em Washington, por Martin Luther King clamava: “I have a dream”, sonho de que, um dia, “os filhos de antigos escravos e os filhos de antigos escravocratas sejam capazes de sentar juntos à mesa da irmandade”. Na história recente do Brasil, a propaganda extrativista de ocupação da Amazônia durante a ditadura militar vendia sonhos de enriquecimento e de modernização, que hoje percebemos obsoletos e insustentáveis.
A 59ª edição da Bienal de Veneza, que inaugura hoje, tem como título O Leite dos Sonhos (“The Milk of Dreams”), a partir do livro da artista inglesa Leonora Carrington (1917-2011), ligada ao surrealismo. Curada pela italiana radicada em NY Cecilia Alemani, o tema escolhido para a Bienal, embora abra leques infinitos para possibilidades de debate e confronto, se faz interessante ao relembrar algumas conexões – igualmente abrangentes – entre o movimento surrealista no início do século 20 e as discussões políticas correntes. De certa forma combatendo um vício de observar o surrealismo apenas como um fenômeno visual, Walter Benjamin refere-se a ele como um projeto para “ganhar as energias de intoxicação para a revolução”. O movimento tem conexões diretas com uma proposta de revolução política, com ideais do materialismo marxista, pautas antifascistas e anticoloniais, e princípios de liberdade.
Stephen Duncombe, professor de mídia e cultura na Universidade de Nova York, publica, em 2007, o livro “Dream: Re-Imagining Progressive Politics in na Age of Fantasy”. Nessa obra, Duncombe defende o sonho como uma potente ferramenta para pensar pautas progressistas, já que os conservadores se atêm à razão sóbria para guiá-los. Essa “dreampolitik”, como escreve o autor, possibilita um sistema político que incorpore os sonhos das pessoas. A própria curadora da Bienal, Cecilia Alemani, diz que “O Leite dos Sonhos aspira ser uma exposição otimista, que celebra a arte e a sua capacidade de criar cosmologias alternativas e novas condições de existência”.
Entrada do Pavilhão do Brasil em Veneza, com obra de Jonathas de Andrade, que apresenta a expo solo Com o Coração Saindo pela Boca (2022) | Foto: Marco Cappelletti / Cortesia La Biennale di Venezia
Sonhos de democracia
No Pavilhão do Brasil, Jonathas de Andrade opta por desviar de uma visualidade realista, quase documental, recorrente em seu trabalho, que retrata o Brasil em suas pluralidades e as discrepâncias que o fazem belo e crítico ao mesmo tempo. Diferente da videoinstalação Olho da Rua – obra de Andrade que também participa de PENUMBRA, na Fondazione In Between Art Film, uma das exposições paralelas que compõem o programa oficial da Bienal –, na instalação Com o Coração Saindo pela Boca, pessoas reais dão lugar a arquétipos surrealistas – porquanto pertinentes ao tema da Bienal – que se conectam com o estado de gigantismo dos sonhos, assim como o de emergência do cenário sociopolítico brasileiro.
No vídeo Nó na Garganta, apresentado no Pavilhão, Andrade segue com sua estética documental usual como instrumento de documentação e de denúncia. Nessa obra, o artista retrata jovens trabalhadores de um zoológico privado em Maragogi (AL) interagindo com cobras, que remete a um “surrealismo ecológico e fantástico latino-americano”, como aponta Andrade, seguindo uma certa ritualística peculiar brasileira entre homem e animal também presente em uma das mais conhecidas obras do artista, O Peixe, de 2016. Vale ressaltar que essa dimensão de encantamento entre homem e natureza também é trabalhada nas obras de Roberto Gil de Montes, artista de Guadalajara, no México, que expõe na mostra principal.
Os sonhos ocupam um espaço de lapso em que a linguagem se torna ineficiente. Andrade, entretanto, confronta esses dois universos ao apresentar expressões populares brasileiras em imagens de corpo provocativas e “carnavalescas” – como descreve o próprio artista –, que alertam para a conjuntura psicótica do atual governo federal brasileiro. O artista aponta tanto para um estado de emergência, evidenciado no título – Com o Coração Saindo pela Boca, assim como “À Bout de Souffle” (1960), filme de Jean-Luc Godard –, como para um longo processo causador e mantenedor dessa crise, como a planejada crítica pedagógica, sobretudo de educação política, da maioria dos brasileiros que votam “com dedo podre”, ou das falas que “entram por um ouvido e saem pelo outro” – materializadas em jocosas orelhas que saúdam os visitantes do pavilhão.
Pavilhão dos Estados Unidos, irreconhecível, recebe o projeto Sovereignty [Soberania], de Simone Leigh | Foto: Marco Cappelletti / Cortesia La Biennale di Venezia
Reconhecimentos sonhados
Simone Leigh e Sonia Boyce fazem história na presente Bienal de Veneza ao receberem dois Leões de Ouro. É a primeira vez em 127 anos de evento que o prêmio é dado a uma mulher negra – nesse caso, duas – além de ser a primeira vez que os pavilhões dos Estados Unidos e do Reino Unido são representados por mulheres negras – Leigh e Boyce, respectivamente.
Leigh, artista estadunidense que chefia o pavilhão dos Estados Unidos, recebeu o prêmio por sua obra Brick House, busto de bronze de quase 5 metros de altura instalado no High Line em Nova York – que também tem curadoria de Cecilia Alemani – em 2019 e levado a Veneza. A escultura, a primeira da série Anatomy of Architecture, combina elementos figurativos humanos com formas arquitetônicas, com preciosas analogias sobre corpo e lar. Brick House está na galeria inicial da exposição principal, no Arsenale. As esculturas de Leigh, imensas mas delicadas, expostas no pavilhão estadunidense, remetem à luta negra e feminista na história dos Estados Unidos, reinvindicando seus corpos, lugares de fala e posições de protagonismo. O pavilhão, com tijolos cerâmicos expostos, foi contornado por um avarandado com pilares de madeira, coberto com fibras naturais, utilizando-se de técnicas construtivas tradicionais africanas e simbolizando a luta contra o colonialismo branco. O projeto de Leigh, Sovereignty, apresenta esculturas de bronze, cerâmicas e vídeos que versam sobre a diáspora africana e as formas como ela foi representada em vários momentos da história da arte.
Feeling Her Way, o projeto de Boyce para o pavilhão do Reino Unido, resultou na premiação à artista na categoria de melhor participação nacional. Em sua mostra solo, a artista apresenta uma instalação acerca do trabalho e da história de cinco musicistas negras britânicas, de diferentes temporalidades, ignoradas pelas grandes instituições da indústria musical: Jacqui Dankworth, Poppy Ajudha, Sofia Jernberg, Tanita Tikaram e Errollyn Wallen. No espaço central, uma videoinstalação de Sonia Boyce em quatro canais promove um encontro entre as cantoras no histórico estúdio Abbey Road, em Londres, enquanto as salas laterais exibem os trabalhos individuais de cada uma, fazendo com que os sons se sobreponham de maneira harmônica.
Instalação com diversas projeções de vídeo, mais fotografias e pinturas, de Francis Alÿs, toma o Pavilhão da Bélgica: A Natureza do Jogo [The Nature of the Game] (2017-em curso) | Foto: Marco Cappelletti / Cortesia La Biennale di Venezia
Sonhar o levante, amplificar o desastre
No pavilhão belga, Francis Alÿs apresenta o projeto The Nature of the Game, com vídeos e fotos produzidos desde 2017 de crianças brincando em vários países, como Afeganistão, Iraque, Hong Kong, Congo, Bélgica e México. Com curadoria de Hilde Teerlinck, a exposição solo de Alÿs objetiva retratar as relações das crianças com o ambiente, sobretudo nas regras que pautam suas brincadeiras, algumas em meio ao caos ambiental, outras em paisagens arruinadas por guerras. Os filmes – que interagem entre si na expografia, com os áudios se contrapondo como num grande campo de brincar com crianças do mundo todo – reiteram o interesse do artista pela vida urbana e pelas dinâmicas que relacionam as tradições culturais e as liberdades infantis. Embora filmados em quatro continentes diferentes, Alÿs sublinha uma certa universalidade e ingenuidade natural da brincadeira infantil. Junto aos vídeos e fotos, são expostas pequenas e delicadíssimas pinturas de levantes sociais pelo mundo e desenhos de caderno que retratam crianças brincando em lugares politicamente hostis.
Também objetivando expor crises e levantes, o pavilhão da Austrália apresenta DESASTRES, um projeto sonoro e visual experimental do artista Marco Fusinato, que combina ruídos sonoros e imagens da mídia de massa. Pela primeira vez, o pavilhão australiano abriga uma performance duradoura, onde o artista se apresenta diariamente durante as primeiras horas dos 200 dias de Bienal: usando uma guitarra elétrica como geradora de sinal para um enorme amplificador, Fusinato produz improvisações de ruídos e retornos sonoros saturados em intensidades discordantes que estão ligadas a um dilúvio de imagens de múltiplas plataformas online, geradas randomicamente a partir de um fluxo de palavras-chave para pesquisa definidas pelo artista. Essa torrente de palavras gritantes em uma estética próxima à das manchetes de jornal também é abordada pela instalação da artista estadunidense Barbara Kruger, que mantém diálogos entre a propaganda, a tipografia e o poder assertivo de imagens e frases sintéticas.
Stan Douglas, artista canadense reconhecido por suas instalações em cinema e vídeo, apresenta o projeto 2011 ≠ 1848 em dois lugares em Veneza – primeira vez que o comitê canadense faz algo do tipo. No Pavilhão do Canadá no Giardini, são apresentadas quatro fotografias em grandes dimensões, além de uma grande videoinstalação em dois canais exibida no Magazzini del Sale No. 5, armazém de sal do século 16 no Dorsoduro. O projeto de Douglas é inspirado no aniversário de 10 anos de 2011, quando expressivos levantes sociais e políticos aconteceram pelo mundo. Dentre eles, a Primavera Árabe no norte da África e no Oriente Médio – que se relacionam com o projeto The World in the Image of Man, de Danielle Arbid e Ayman Baalbaki no Pavilhão do Líbano –, a incandescência dos protestos de ocupação nos Estados Unidos – como o Occupy Wall Street –, manifestações no Reino Unido em resposta a medidas de austeridade e rebeliões em Vancouver, cidade natal do artista.
Também objetivando expor crises e levantes, o pavilhão da Austrália apresenta DESASTRES, um projeto sonoro e visual experimental do artista Marco Fusinato, que combina ruídos sonoros e imagens da mídia de massa. Pela primeira vez, o pavilhão australiano abriga uma performance duradoura, onde o artista se apresenta diariamente durante as primeiras horas dos 200 dias de Bienal: usando uma guitarra elétrica como geradora de sinal para um enorme amplificador, Fusinato produz improvisações de ruídos e retornos sonoros saturados em intensidades discordantes que estão ligadas a um dilúvio de imagens de múltiplas plataformas online, geradas randomicamente a partir de um fluxo de palavras-chave para pesquisa definidas pelo artista. Essa torrente de palavras gritantes em uma estética próxima à das manchetes de jornal também é abordada pela instalação da artista estadunidense Barbara Kruger, que mantém diálogos entre a propaganda, a tipografia e o poder assertivo de imagens e frases sintéticas.
Stan Douglas, artista canadense reconhecido por suas instalações em cinema e vídeo, apresenta o projeto 2011 ≠ 1848 em dois lugares em Veneza – primeira vez que o comitê canadense faz algo do tipo. No Pavilhão do Canadá no Giardini, são apresentadas quatro fotografias em grandes dimensões, além de uma grande videoinstalação em dois canais exibida no Magazzini del Sale No. 5, armazém de sal do século 16 no Dorsoduro. O projeto de Douglas é inspirado no aniversário de 10 anos de 2011, quando expressivos levantes sociais e políticos aconteceram pelo mundo. Dentre eles, a Primavera Árabe no norte da África e no Oriente Médio – que se relacionam com o projeto The World in the Image of Man, de Danielle Arbid e Ayman Baalbaki no Pavilhão do Líbano –, a incandescência dos protestos de ocupação nos Estados Unidos – como o Occupy Wall Street –, manifestações no Reino Unido em resposta a medidas de austeridade e rebeliões em Vancouver, cidade natal do artista.
2011 ≠ 1848, de Stan Douglas, exposição solo no Pavilhão do Canadá | Foto: Marco Cappelletti / Cortesia La Biennale di Venezia
Douglas faz um paralelo com o ano de 1848, em que classes trabalhadoras da Europa lutaram contra a ausência de liberdades democráticas, censuras midiáticas e a dominação contínua de uma elite aristocrática. O artista salienta que, pela velocidade dos meios de comunicação, os protestos de 1848 tiveram uma escala continental, divulgados pela mídia impressa, enquanto os levantes de 2011 foram globais, disseminados por meio das mídias digitais.
Sonhos de paz
No meio do Giardini, encontra-se o pavilhão da Rússia fechado e com guardas para garantir que visitantes não se aproximem do prédio. Na quarta-feira, dia 20/4, o artista russo Vadim Zakharov se posicionou em silêncio em frente ao pavilhão russo – onde representou seu país na Bienal de 2013 –, com um cartaz que dizia “Eu protesto contra a propaganda da Rússia e a invasão russa que levou à guerra na Ucrânia. O assassinato de mulheres, crianças e pessoas da Ucrânia é uma desonra para a Rússia. Estou em frente ao pavilhão russo contra a guerra e contra os laços culturais do governo russo”.
O New York Times circulou uma foto de Zakharov segurando esse cartaz em frente ao pavilhão russo com um guarda italiano prostrado à sua frente, solicitando reforços por rádio. O cartaz posteriormente foi confiscado, e o artista, após negociações, conseguiu autorização para ceder entrevistas por cerca de 20 minutos. O jornal também destacou que essa é a primeira edição desde 1942 que acontece enquanto uma guerra ocorre na Europa.
No final de fevereiro, o então curador do pavilhão russo, Raimundas Malašauskas, renunciou ao posto pela invasão e bombardeio russos na Ucrânia. Em seu pronunciamento oficial, Malašauskas agradeceu a Alexandra Sukhareva e a Kirill Savchenkov, artistas russos com os quais estava desenvolvendo o projeto para a Bienal, mas seguiu dizendo que a guerra entre a Rússia e a Ucrânia é “política e emocionalmente insuportável”.
O curador destacou que nasceu e cresceu na Lituânia quando esta ainda era parte da União Soviética e que viveu sua dissolução em 1989, percebendo e aproveitando o desenvolvimento do seu país desde então. Malašauskas relata que a ideia de voltar a viver sob um império russo ou de qualquer outra nacionalidade é “simplesmente intolerável”, e que, ao invés de atacar as pessoas da Rússia, deve-se ajudar e defenderem múltiplos níveis solidários a população ucraniana.
Promessa de sonhos
Em contrapartida, houve uma força-tarefa para a exibição do trabalho do artista ucraniano Pavlo Makov. Após o ataque de 24 de fevereiro, em que a Rússia bombardeou a Ucrânia com pleno arsenal, a curadora Maria Lanko partiu de sua casa, em Kiev, com alguns itens pessoais e com os 78 funis de bronze que compõem a obra Fonte de Exaustão de Makov, com a intenção de tirar a obra do país em segurança. Lanko dirigiu por seis dias até cruzar a fronteira até a Romênia; e, após uma pausa de descanso em Budapeste, seguiu até Viena, na Áustria.
A obra foi inicialmente concebida em meados nos anos 1990, num período de transição em que a população ucraniana votou, por meio de um referendo, pela independência do país, em 1991. Desde então, a obra se desenvolveu até a forma como é apresentada na Bienal, com funis bifurcados montados numa composição triangular em que o fluxo de água único que parte de cima escorre e enfraquece ao passar pelos funis até atingir a base. Em Milão, Lanko encontrou uma empresa de produção que concordou em recriar as partes da obra que ela havia deixado para trás na Ucrânia, e, finalmente, o trabalho chegou em Veneza.
Fazendo parte da programação paralela oficial da Bienal, acontece a mostra Essa É a Ucrânia: Defendendo a Liberdade, no prédio da Scuola Grande dela Misericordia, no norte de Veneza. O evento-satélite apresenta trabalhos comissionados pelo grande colecionador de arte ucraniano Victor Pinchuk a Damien Hirst, Marina Abramovic, Olafur Eliasson, Nikita Kadan e artistas contemporâneos ucranianos. Leilões beneficentes têm acontecido em outros pontos de Veneza, arrecadando dinheiro para museus e instituições de caridade na Ucrânia.
Uma das fotos mais esperançosas que circularam na internet nos últimos dias é de Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel, curadores da próxima edição da Bienal de São Paulo, sorridentes em uma gôndola pelos rios venezianos, postada por Menezes em sua conta no Instagram. A imagem nos nutre com a esperança de uma bienal plural, sonhadora, curada por profissionais competentes e assertivos em reajustar os desmantelados prismas perpetuados nas bienais ao longo da história. Não é, certamente, uma cura atestada – essa, impossível e idílica –, mas uma revisão digna de um recorte do que se faz mandatório discutir e apresentar no Brasil de hoje. Essa equipe nos permite sonhar.