STF decidirá em 25 de março se Bolsonaro vira réu: qual o peso da delação de Mauro Cid na denúncia?

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Jair Bolsonaro e Mauro Cid. Foto: Reprodução

por BBC

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) vai decidir em 25 de março se aceita ou não a denúncia que acusa Jair Bolsonaro (PL) e seus principais aliados de tramar um suposto golpe de Estado após sua derrota nas eleições de 2022.

Se o tribunal aceitar, Bolsonaro e outros acusados se tornarão réus e vão a julgamento pela mesma Primeira Turma do Supremo, formada por Alexandre de Moraes, Carmen Lúcia, Luiz Fux, Flávio Dino e Cristiano Zanin (presidente da turma).

O anúncio foi feito na quinta-feira (13/3) após Moraes, que é o relator do caso, liberar para a análise a denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR).

Na semana passada, os advogados de Bolsonaro protocolaram sua defesa prévia e, na quinta (13/3), a PGR respondeu aos questionamentos da defesa.

Em sua manifestação, o procurador-geral Paulo Gonet manteve as acusações contra Bolsonaro pelos crimes de liderar organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado, além de crimes ligados aos ataques às sedes dos Poderes em Brasília em 8 de Janeiro de 2023.

Gonet listou Bolsonaro e mais 7 acusados nesta denúncia, grupo que ele descreve como “núcleo crucial” na suposta tentativa de golpe. É a denúncia desse primeiro grupo que será analisada pelo Supremo no dia 25.

O ex-presidente nega todas acusações e sua defesa insiste num ponto: quer que seja retirado da denúncia o acordo de delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-braço direito do ex-Bolsonaro, que consideram inválido.

O argumento da defesa, entre outros, é que Cid foi coagido a colaborar. A PGR e a defesa de Cid reiteram que foi tudo feito conforme a lei.

Um dos que também dizem que Cid foi “coagido” é o ex-ministro e general da reserva Walter Braga Netto, também parte da do “núcleo crucial”, segundo Gonet.

Braga Netto foi acusado pelo ex-ajudante de ordem, entre outras coisas, de levantar dinheiro para operacionalizar um suposto plano para matar Lula em 2022.

Os questionamentos reacenderam o debate sobre o instituto da delação premiada, que é quando um investigado fecha um acordo para colaborar com as autoridades em troca de uma punição menor.

A modalidade ficou popular durante a operação Lava Jato (2014-2021), que apurou um esquema de corrupção na Petrobras e em outras obras públicas e atingiu políticos dos principais partidos como o PT, o PP, o PSDB , além de empresários das maiores empreiteiras do país.

A investigação levou o então ex-presidente Lula à cadeia até que o Supremo Tribunal Federal, anos depois, acabou por derrubar as sentenças consideradas pela corte como inválidas.

Na época da Lava Jato, as delações eram bombardeadas por críticos que afirmavam que elas estavam sendo obtidas sob coerção pelo então juiz Sergio Moro.

O principal argumento era de que prisões seriam feitas apenas para forçar uma futura colaboração.

Os mesmos críticos afirmavam que condenações não poderiam ser baseadas unicamente em colaborações premiadas.

Agora, parte destas mesmas questões voltam à tona.

Em vez dos petistas, dessa vez são os bolsonaristas, que costumavam ser entusiastas da Lava Jato, que criticam a delação de Cid e também o ministro relator caso no Supremo, Alexandre de Moraes, que consideram parcial.

“O surpreendente é que eu tenha que pedir a anulação”, afirmou Celso Vilardi, o advogado que defende Bolsonaro, à GloboNews, logo após a denúncia ser apresentada.

“Cadê os juristas, cadê os advogados que criticaram a Lava Jato? Qual é o recado que nós vamos passar para o país admitindo uma delação como essa?”, questionou ele.

A BBC News Brasil buscou juristas, incluindo críticos da Lava Jato, que defendem ou são contrários ao instituto da delação premiada, para analisar, tanto a denúncia contra Bolsonaro, como o peso da delação de Mauro Cid no conjunto das acusações contra o ex-presidente.

Os juristas também avaliaram as críticas apontadas na colaboração. Entenda a seguir.

Os pilares da denúncia e o peso da delação de Cid

Ao todo, a PGR denunciou 34 pessoas, dentre elas o ex–presidente Jair Bolsonaro (PL), por envolvimento em uma suposta trama golpista.

O texto das denúncias, distribuídas em cinco peças separadas para facilitar a tramitação, é praticamente o mesmo para todos os envolvidos – o que varia são detalhes atribuídos a cada um, de acordo com seu suposto papel na organização criminosa descrita pela PGR.

As acusações são baseadas em relatórios de investigação da Polícia Federal e contém a delação de Mauro Cid, mas também depoimentos dos chefes das Forças Armadas e integrantes da Polícia Rodoviária Federal e um compilado de ações e discursos públicos de Bolsonaro.

As denúncias presentam ainda como supostas provas um amplo conjunto de troca de mensagens entre os acusados, por WhatsApp e e-mails, e registros de suas localizações e movimentações.

O material também apresenta o rastreio da impressão de documentos considerados comprometedores nos palácios presidenciais, entre eles uma minuta que supostamente seria usada para suspender o estado democrático de direito e um suposto plano para matar Lula e outras autoridades.

Em sua delação, Cid implica Bolsonaro em alguns pontos principais, se considerado somente a acusação de ter participado de uma suposta trama golpista:

1 – diz que seu ex-chefe alimentava o plano de ficar no poder, mesmo após ter perdido a eleição, e que editou o texto de uma minuta de decreto que declarava “estado de defesa” no país visando interromper a passagem da presidência para Lula

2- diz que Bolsonaro ele mesmo apresentou essa minuta aos chefes militares.

3 – afirma ainda que Bolsonaro animou a permanência de apoiadores diante de quartéis como meio de pressionar os militares a aderir os seus planos.

A reunião de Bolsonaro com os chefes militares mencionada por Cid foi corroborada pelos depoimentos do general Marco Antônio Freire Gomes (Exército) e do brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior (Aeronáutica).

Em mais de um encontro com o ex-presidente, ambos disseram que se negaram a apoiar o suposto plano de ruptura democrática proposto por Bolsonaro, que lhes teria apresentado a minuta mencionada por Cid.

Além disso, o próprio Bolsonaro também já falou publicamente da existência da minuta, em um comício na avenida Paulista, em São Paulo, em fevereiro de 2024. “Agora, o golpe é porque tem uma minuta de um decreto de estado de defesa. Golpe usando a Constituição? Tenha a santa paciência.”

Para Mauricio Dieter, advogado criminalista e professor da Universidade de São Paulo (USP), a delação de Cid não é determinante na denúncia.

De acordo com Dieter, que é um crítico de colaborações premiadas, mesmo que toda prova em consequência da delação de Cid fosse anulada, as acusações da PGR ainda parariam de pé.

“Eles não precisavam da delação para essa denúncia. A PF descobriu sozinha o plano dos kids pretos”, afirma.

Os mencionados “kids pretos” são um grupo de militares especialistas em operações especiais, do qual Cid fazia parte, assim como outros investigados neste caso.

Segundo o relatório da PF, alguns kids pretos faziam parte do plano “Punhal Verde e Amarelo”, que visaria matar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), além do ministro Alexandre de Moraes.

O advogado criminalista Leonardo Yarochewsky, professor e doutor em ciências penais, também defende que a denúncia se sustentaria sem a delação de Mauro Cid.

“A delação não é o elemento mais importante”, afirma. “As provas são robustas no sentido de que houve uma tentativa de golpe e de abolição do estado democrático de direito.”

Mas para Lenio Streck, jurista e professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), é difícil dizer se a denúncia se sustentaria sem os elementos apontados na delação de Cid. “Teria que fazer uma lipoaspiração na denúncia”, brinca ele, sobre a necessidade de destrinchar o documento.

Ele ressalta, no entanto, que mesmo que a delação seja anulada – algo que ele considera muito difícil de acontecer – as provas encontradas e os depoimentos dos chefes militares seriam mantidos.

“Os documentos que foram encontrados são válidos, foram recolhidos por ordem judicial”, afirma. “A delação é um meio de obtenção de prova, então [com uma eventual anulação da delação] você fica com os documentos.”

O jurista, que é contrário ao instituto da delação premiada, lembra que, se Mauro Cid se sentiu coagido, ele mesmo poderia ter se retirado do acordo.

“Ele teve a oportunidade, na frente do juiz, com o advogado, de dizer que foi pressionado e não queria mais [colaborar]”, afirma Streck. “Não o fez porque lhe era conveniente a liberdade.”

Até o decano do Supremo, Gilmar Mendes, comentou sobre a delação de Cid logo após a denúncia.

“É claro que a delação do Mauro Cid é extremamente importante. Mas nós estamos vendo que ela está lastreada em fatos”, afirmou o ministro a jornalistas.

Gilmar Mendes não compõe a Primeira Turma do STF, onde o julgamento sobre a suposta trama golpista deve ocorrer – embora a defesa de Bolsonaro peça que seja o plenário do Supremo que julgue a causa.

As idas e vindas da delação de Cid

O acordo de delação de Mauro Cid foi firmado em setembro de 2023 e enfrentou idas e vindas e turbulências desde então.

O militar estava preso desde maio daquele ano, após uma operação que investigava falsificação de cartões de vacinação de Bolsonaro, parentes e assessores. Quando sua delação foi homologada, ele foi solto.

Cid também é investigado por suposto envolvimento no desvio de joias sauditas que Bolsonaro ganhou quando era presidente.

Em março de 2024, o acordo esteve prestes a ruir. O militar foi preso novamente, desta vez por obstrução de Justiça e descumprimento de medidas cautelares.

O pano de fundo para essa nova prisão de Cid foi o vazamento de áudios, pela revista Veja, em que ele dizia estar sendo pressionado pela PF para delatar integrantes da trama golpista.

Naquele momento, ele foi interrogado por Moraes, mas ganhou o direito de seguir em liberdade, após se retratar.

Em novembro, mais uma vez a colaboração esteve em risco. Isso ocorreu quando Cid foi convocado novamente a depor, depois que a PF entregou seu relatório apontando detalhes relevantes que o militar não havia mencionado durante a sua colaboração.

Em especial, o plano “Punhal Verde” que envolvia os kids pretos.

Moraes então convocou novamente Mauro Cid a depor, dizendo que aquela era a “última chance” para que ele falasse a verdade e ameaçando prendê-lo novamente, caso ele omitisse os fatos.

Alguns juristas, incluindo a defesa de Bolsonaro, apontam que Cid foi coagido naquele momento, e que Moraes cometeu excessos.

“Moraes cometeu um excesso”, afirma o advogado Mauricio Dieter. “Toda delação [de Mauro Cid] tem um monte de vício, Cid omitiu uma parte importante do plano e depois, pressionado, acabou falando”.

Ele lembra que a delação tem que ser “livre e espontânea”, algo que, em sua opinião, não aconteceu. “Mauro Cid delatou o que o Moraes queria ouvir”.

Ao contrário de Dieter, no entanto, Yarochewsky, que também é contrário ao instituto da delação premiada, não vê excessos na conduta de Moraes.

“Não vi abuso. Vi um juiz rigoroso, mas não vi arbitrariedade”, afirma. “O ministro o advertiu [Mauro Cid], uma vez que percebeu que havia omissões, contradições e o intimou a prestar novo depoimento.”

O advogado Pierpaolo Bottini também acha que a conduta de Moraes ocorreu dentro dos conformes.

“É natural que, se o sujeito omitir, ele pode ser chamado de novo”, afirma. “A colaboração não é prova, é só um meio de orientação”

Lenio Streck segue a mesma linha: “O juiz disse ‘se você não cumprir [com o acordo], você vai preso’, isso é o mínimo que o juiz pode fazer”.

Mas quem poderia ouvir Cid, segundo a lei?

A defesa de Bolsonaro argumenta que Moraes, na figura de juiz, teria o papel de apenas verificar se o acordo era voluntário e legal, e não de interrogar Cid e negociar a sequência ou não do acordo.

A lei determina que a negociação sobre a colaboração deve ser feita entre o advogado do colaborador e o Ministério Público ou a Polícia Federal e que, nesta fase, o juiz não participa das negociações.

Homologada, a delação passa então às mãos do juiz, que deve fazer as verificações sobre o que o delator prometeu entregar.

Não está explícito, segundo a Lei das Organizações Criminosas, que o juiz não deve ouvir o delator após a homologação da delação.

A lei determina apenas que, depois de homologado um acordo de delação premiada, “o colaborador poderá, sempre acompanhado pelo seu defensor, ser ouvido pelo membro do Ministério Público ou pelo delegado de polícia responsável pelas investigações”.

A BBC News Brasil conversou com um delator da Lava Jato que afirmou, sob anonimato, que realizou duas audiências com o juiz Sergio Moro para fazer sua delação premiada durante as investigações da operação.

O que está sendo questionado, no entanto, não é se Moraes poderia, na figura de juiz, ouvir Mauro Cid, como explica Thulio Guilherme Nogueira, advogado e sócio-fundador da DNA Penal.

“O ponto é a postura ativa que ele [Moraes] toma”, afirma. “No meu ponto de vista, existe uma postura bastante questionável. Entendo que há uma certa quebra da imparcialidade quando tem um juiz conduzindo de forma tão assertiva um depoimento de colaboração premiada.”

Para Nogueira, que defende o instituto da delação premiada, a desistência de Cid no meio do processo de colaboração não colocaria somente a liberdade provisória dele em xeque. “Se ele decide por não seguir com esse acordo, ele teria um julgamento justo e imparcial?”, questiona.

Para a defesa de Bolsonaro, a delação tem que ser anulada porque todo o processo é “viciado”.

Os advogados do ex-presidente dizem que o acordo foi feito sob coerção e ameaça, inclusive contra os parentes de Cid – seu pai, o general da reserva Mauro Lourena Cid, sua filha maior de idade e sua esposa.

Isso porque antes de interrogar Mauro Cid, Moraes alertou que a família do militar poderia ser envolvida nas investigações em uma eventual quebra do acordo de colaboração.

Mauricio Dieter também acredita que o militar foi pressionado pelo ministro. O jurista explica que, teoricamente, a delação pode ser o “fio condutor” de uma denúncia. “É a narrativa que amarra as evidências, costura um sentido para as conversas [entre os denunciados]”, diz.

Mas, tanto na Lava Jato, quanto agora, Dieter defende que a colaboração foi utilizada como ponto de partida e não como parte da apuração da investigação.

“A delação como ponto de partida de casos complexos como esse já se provou um instrumento deficiente”, afirma. “As delações sempre são o que a acusação quer ouvir e raramente são a expressão da verdade.”

Devido ao que juristas apontam como brechas nas leis que instituem a colaboração premiada – especialmente a Lei das Organizações Criminosas e a Lei Anticorrupção – Streck defende uma regulamentação da delação premiada.

Ele lembra que o PT entrou com uma ação no Supremo em 2021 para regulamentar a delação premiada (ADPF 919), mas até o momento ela não foi julgada.

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