Trump usa ação na Justiça para inibir institutos de pesquisa, dizem especialistas
As pesquisas de J. Ann Selzer já carregaram as esperanças e medos dos homens e mulheres que buscavam liderar a nação, registrando com uma precisão impressionante as opiniões dos eleitores de Iowa, que exerciam uma influência desproporcional na escolha dos presidentes dos Estados Unidos.
Agora, semanas após anunciar sua aposentadoria, Selzer representa algo inesperado: o temor das retaliações de Donald Trump em seu novo mandato.
Em vez de ser lembrada por seus sucessos, Selzer, diretora do Iowa Poll, está sendo criticada por um último (e espetacular) erro —as sondagens que mostraram a vice-presidente Kamala Harris à frente de Trump no estado de Iowa, profundamente conservador, nas eleições presidenciais de 2024. Divulgadas em 2 de novembro, elas criaram a expectativa de um apoio massivo à democrata por parte das eleitoras mulheres.
A pesquisa é alvo de um processo que os advogados do presidente eleito abriram nesta semana contra Selzer, a empresa dela e as organizações que as contratavam, o jornal The Des Moines Register e a organização responsável pelo veículo, a Gannett.
Advogados especializados em mídia veem a ação como um esforço flagrante de intimidar tanto a imprensa quanto pesquisadores de opinião semanas antes de sua posse.
Não está claro se Selzer, 68, arcará com os custos de sua defesa sozinha. Um porta-voz da Gannett disse que o processo não tinha base legal, mas se recusou a comentar se a empresa ou o jornal pretendem assumir a despesa. A ex-diretora da Iowa Poll tampouco quis falar sobre o assunto, e quando procurada, afirmou que neste momento está “centrada em obter uma representação adequada”.
Selzer sempre contou com o respeito de ambos os partidos em Iowa, uma reputação oriunda do sucesso em prever tanto vitórias de republicanos quanto de democratas, diz David Kochel, consultor republicano de longa data no estado. “A Iowa Poll tem sido o padrão ouro por muito tempo.”
A pesquisadora já tinha errado em outras ocasiões: o último levantamento que ela publicou sobre a corrida presidencial de 2004 em Iowa mostrou o democrata John Kerry à frente do então presidente, o republicano George W. Bush, por 5 pontos percentuais. Dias depois, Bush venceu no estado por 0,07 pontos. Mas eram tempos diferentes, menos polarizados.
As vitórias de Selzer superam em muito suas derrotas, mesmo quando ela ia contra a maré. Em 2014, enquanto outros previam o triunfo do democrata Bruce Braley na corrida para suceder o senador Tom Harkin após sua aposentadoria, ela previu uma vitória fácil para a republicana Joni Ernst. E estava certa.
A pesquisa que ela divulgou em novembro mostrando Kamala à frente de Trump por 47% a 44% em Iowa desencadeou uma torrente de previsões de que a vice-presidente poderia vencer a disputa ao angariar votos femininos que outros estudo poderiam não ter capturado.
Trump acabou vencendo no estado por mais de 13 pontos percentuais.
Em uma coluna de despedida no mês passado, Selzer defendeu sua reputação e sua integridade ao mesmo tempo em admitiu seu último erro. “Pesquisas de opinião são uma ciência baseada em estatística, e as ciências costumam humilhar os cientistas de tempos em tempos”, ela escreveu. “Então, estou humilhada.”
Mas sua humildade não é suficiente para Trump. Seu processo cita a Lei de Proteção do Consumidor de Iowa ao afirmar que a pesquisa enganou os eleitores de modo a “criar uma falsa narrativa sobre a inevitabilidade” da vitória de Kamala, num ato descarado de “interferência eleitoral”.
Devereux Chatillon, uma advogada especializada em mídia de Mount Kisco, Nova York, zombou do argumento dos advogados de Trump. Para fazer a acusação de fraude empresarial, os advogados de Trump têm que mostrar de alguma forma que o negócio em questão, o jornal The Des Moines Register, promoveu, de maneira fraudulenta, um produto que é nada mais, nada menos que a vice-presidente dos EUA.
Ela diz que, se o presidente eleito está sugerindo que os eleitores foram de alguma forma enganados sobre o produto, isso claramente não apareceu nos resultados da eleição —nem nacionalmente nem em Iowa.
O processo é visto por advogados de mídia e defensores da liberdade de expressão como uma forma de contornar as leis sobre difamação, excepcionalmente difíceis de serem vencidas por famosos como Trump.
Invocar fraude ao consumidor pode não convencer os juízes, mas tem uma grande vantagem: sob os estatutos de fraude ao consumidor locais, procuradores-gerais estaduais podem investigar e abrir casos e até mesmo intervir sobre processos existentes.
Ganhando ou perdendo, a ação traz um aviso inconfundível para qualquer veículo de notícias que ouse desafiar o próximo presidente: “Esta queixa é a forma mais recente que Trump encontrou de usar processos judiciais para punir reportagens de que ele não gosta”, afirma Bruce D. Brown, diretor executivo do Comitê de Repórteres pela Liberdade de Imprensa.
Essas batalhas legais costumam ser prolongadas e custosas, e mesmo que uma vitória de Trump seja improvável, como sugerem os especialistas, elas podem drenar as finanças de alguém até que sejam encerradas.
Para Selzer, a tragédia é a mancha negra que paira sobre o seu nome após sua aposentadoria. As redes sociais estão cheias de publicações em que apoiadores de Trump a comparam a uma “super vilã” de desenho animado e espalham teorias da conspiração que dizem que o resultado de sua pesquisa foi manipulado por democratas.
Em uma entrevista com jornalistas de Iowa no mês passado, ela disse que foi a polícia de West Des Moines a alertou sobre ameaças à sua segurança. “Se a polícia bate à sua porta e diz que seu nome foi citado, levo isso a sério”, afirmou a pesquisadora. “Estou tomando todas as precauções possíveis.”