Usuários de drogas são resgatados em comunidade terapêutica suspeita de tortura e cárcere privado

0

Local chamado de "tranca" em comunidade terapêutica - Reprodução /Ministério Público de São Paulo

Ao menos 89 usuários de drogas, sendo 24 adolescentes, foram resgatados na terça-feira passada (25), na Ilha do Bororé, no extremo sul de São Paulo, após denúncias de maus tratos, tortura e cárcere privado na comunidade terapêutica onde estavam internados. Cinco funcionários foram presos em flagrante, entre eles uma psicóloga, e dois internos foram hospitalizados com sinais de agressão.

A ação foi deflagrada pela Promotoria de Infância e Juventude de São Paulo após a mãe de um adolescente denunciar maus tratos. A comunidade terapêutica investigada, Instituto Viver Melhor, é administrada por Girlandro Soares da Silva, conhecido como pastor Gil, e sua mulher, Solange Novaes Soares. A defesa do casal afirma que eles não sabiam da situação .

De acordo com as apurações, o casal mantém ao menos mais duas unidades de acolhimento para usuários de drogas no extremo sul da capital, Bandeirante e Viva La Vida, e tem como estratégia mudar o nome dos locais com frequência para driblar a fiscalização.

Em depoimento ao delegado do 101º DP (Jardim das Imbuias), onde o inquérito foi instaurado, alguns usuários relataram terem sido impedidos de deixar a comunidades terapêutica investigada e sofriam agressões caso pedissem para interromper o tratamento. “Não havia encaminhamento médico para as internações e os internos eram proibidos de manter contato com os familiares”, diz o promotor Charles Zanini Pizoni, responsável pelas investigações.

Como estratégia para mantê-los internados, o promotor afirmou que os funcionários o ameaçavam com a cobrança de multa por rescisão de contrato caso deixassem o tratamento antes do período combinado. As mensalidades custavam entre R$ 800 e R$ 1.500.

Ao adentrar um dos endereços, o promotor contou ter encontrado usuários com sinais de agressão, como marcas de queimadura, cortes e hematomas pelo corpo. Um deles estava deitado na cama, com a respiração ofegante, suspeita de fratura na costela e sob efeito de calmantes. Outro tinha sangramento visível no ouvido. “São sinais visíveis de tortura”, diz o promotor. O Samu foi chamado durante a operação e os dois internos foram encaminhados a um hospital municipal.

Apesar de ter encontrado 24 adolescentes nas comunidades terapêuticas, o promotor reitera que a permanência de menores de idade nesse tipo de equipamento é proibida por lei. Nesses casos, a internação psiquiátrica para dependência química é feita apenas em leitos hospitalares especializados, e sem contato com outros pacientes adultos.

Diferente dos hospitais psiquiátricos, as comunidades terapêuticas não são consideradas unidades de tratamento médico e, sim, locais de acolhimento para usuários de drogas. A maioria atua em consonância com práticas religiosas e inclui rotina de orações, trabalho braçal e abstinência.

Os usuários de drogas relataram em depoimentos terem sido obrigados a passar a madrugada limpando os cômodos das comunidades terapêuticas, e também passar a noite dentro de um lago próximo “para pescar peixes” com as mãos. Pedaços de bambu, de madeira e enxadas foram encontradas e, segundo o promotor, eram usados para ameaçar e agredir os internos.

Procurada, a defesa de Girlandro Soares da Silva e Solange Novaes Soares afirmou que os proprietários não sabiam dos casos de agressão e tortura e que os internos não eram impedidos de deixar o tratamento.

“As denúncias feitas foram realizadas por pacientes novos, que por muita das vezes ainda se encontravam em abstinência de substâncias químicas e não estavam aptos a iniciar o tratamento”, disse o advogado Caio Lima Barros em nota.

“Reiteramos que, geralmente, o comportamento de um adicto ao chegar em unidades terapêuticas é constantemente grosseiro, onde por variadas vezes, simulam situações de agressões graves para forçar sua saída (que é voluntária) para retornar às drogas”, continua.

Segundo o advogado, os dependentes químicos foram liberados “sem auxílio da prefeitura ou vigilância sanitária local” e “deixados na rua”.

Os adolescentes resgatados foram encaminhados às famílias e ao conselho tutelar da região. Dois internos com doenças psiquiátricas foram encaminhados a centros de assistência social.

Em depoimento à Polícia Civil, um interno resgatado de 29 anos, viciado em drogas K, afirmou que foi levado à comunidade terapêutica há cerca de 14 dias após ser abordado na rua por uma equipe de remoção. Ele disse que teve as mãos e pernas amarradas e foi amordaçado dentro do veículo, similar a uma ambulância, que o levou a um dos endereços investigados na Ilha do Bororé. Segundo ele, a família pagou R$ 400 pela remoção e R$ 800 mensais para mantê-lo internado.

Ao chegar, o usuário afirmou que foi agredido com chutes e socos por dois funcionários, um deles quebrou uma prancheta no seu rosto.

Esse mesmo interno foi encontrado pela equipe do Ministério Público trancado em uma pequena edícula chamada de “tranca”, onde a comida era entregue por debaixo da porta que ficava fechada o tempo todo. Aos policiais, ele afirmou que foi colocado lá após se recusar a rezar o Pai-Nosso em voz alta e apenas de cueca.

O método de punição consta em depoimentos de outros usuários resgatados nas comunidades terapêuticas. Após as agressões, os internos contam que eram obrigados a tomar um coquetel de calmantes em pó.

Dos cinco funcionários presos em flagrante nesta terça, a Justiça manteve a prisão preventiva de três. Segundo o advogado da comunidade terapêutica, se trata de um paciente psiquiátrico ainda internado na instituição e outros dois ex-internos voluntários que ajudavam na monitoria do local.

About Author

Deixe um comentário...