Como o diretor Walter Salles escancarou o Brasil para o Oscar em ‘Ainda Estou Aqui’

O cineasta Walter Salles e a atriz Fernanda Torres nos bastidores de Ainda Estou Aqui, em retrato feito em carvão - Daniel Lannes
Quando o nome “Central do Brasil” ecoou no saguão naquela cerimônia do Globo de Ouro de 1999, Walter Salles subiu ao palco com um largo sorriso e se fixou distante do microfone, deixando o caminho livre para Fernanda Montenegro agradecer pelo prêmio de melhor filme em língua estrangeira.
Agora que “Ainda Estou Aqui” segue trajetória parecida, o cineasta mais uma vez desvia dos holofotes, fazendo de Fernanda Torres o rosto da campanha rumo ao Oscar, por mais que as chances de vitória, hoje, sejam mais sólidas em filme internacional que em atriz –há ainda uma surpreendente indicação a melhor filme.
O fato pode parecer irrelevante, mas demonstra um forte traço de sua personalidade. Discreto, reservado e sóbrio, ele nem parece um dos cineastas de maior prestígio e fama que o cinema brasileiro já produziu.
Seus filmes receberam sete indicações ao Oscar, sem falar nos prêmios do Bafta, a maior láurea do cinema britânico, e dos festivais de Berlim, Cannes, Veneza, Sundance e San Sebastián atrelados ao seu nome, graças também a “Diários de Motocicleta” e “Abril Despedaçado”. Mas nem por isso ele faz pose de celebridade.
Aos 68 anos, o cineasta recorre à discrição de um blazer e camiseta básica em muitas de suas aparições públicas, não é presente nas redes sociais e passa pelos tapetes vermelhos em modo “low profile”, contrariando as pavoneadas que correm nas veias de Hollywood, uma meca de personalidades agigantadas.
Talvez por berço, o glamour nunca o deslumbrou. Filho do diplomata Walther Moreira Salles, que foi embaixador nos Estados Unidos e responsável por negociar a dívida externa brasileira no segundo governo de Getúlio Vargas, o cineasta é um dos herdeiros do maior banco do país, o Itaú Unibanco, fruto de fusões que se iniciaram com a Casa Bancária Moreira Salles, há um século.
Mas não foi só a fortuna pessoal, avaliada em R$ 26,5 bilhões, que deu ao artista acesso às elites intelectuais e artísticas do mundo, gestando o cineasta que desfila hoje no Oscar. Walther, o pai, era amigo de algumas das figuras mais importantes do século passado, como Assis Chateaubriand, Ary Barroso, Greta Garbo e os Rockefellers. Mais do que pelo tino comercial, era conhecido por seus jantares e festas, um de seus maiores ativos políticos.
A mãe, Elisa Moreira Salles, ou Elisinha, era descrita em jornais da época como uma mulher renascentista. Era culta, elegante, politizada, um pouco como Eunice Paiva. Integrou uma comitiva que visitou a China às vésperas da Revolução Cultural de Mao Tse-Tung e relatou a ebulição social que testemunhara à revista O Cruzeiro. “Quanto vermelho! Quanto barulho”, ela escreveu.
Em sua casa na Gávea, na zona sul do Rio de Janeiro, Elisinha promovia jantares concorridos. Esteve presente no lendário baile do preto e branco de Truman Capote, vestiu o mesmo Givenchy que Audrey Hepburn e Wallis Simpson num evento e aparece nos diários deixados por Andy Warhol, pai da pop art e de festas tão faraônicas que fariam inveja aos coquetéis pós-Oscar.
“Existia uma grande liberdade para que cada um de nós definisse o seu destino. Nunca fomos tolhidos nos nossos percursos individuais”, diz João Moreira Salles, irmão de Walter e também cineasta. Na sua obra está o documentário “No Intenso Agora”, feito a partir de filmes caseiros da viagem da mãe à China.
“Jamais faltou estímulo. Fazem parte das minhas memórias de infância a grande biblioteca do meu pai e as visitas quase compulsórias a museus, na companhia da minha mãe. Na época, era o preço que a gente tinha que pagar para depois se divertir. Hoje, sei que muito daquilo ficou. Ela educou o nosso olho.”
Quando adolescente, o artista tinha um laboratório de fotografia no porão de casa. “O germe do cinema talvez estivesse ali”, diz João. Ele lembra que, numa viagem, o irmão levou uma câmera, reuniu os amigos e dirigiu um filme caseiro. A namoradinha da época era a protagonista, e João fazia as vezes de um músico incompreendido.
“Todas as cenas eram improvisadas. Como as pessoas inventaram na hora o que dizer, aconteceu uma coisa interessante. As implicâncias da vida foram levadas para a cena. Uma delas acabava com uma amiga dizendo para outra, com quem havia brigado, ‘sua putinha!’. Ou seja, a encenação dizia a verdade. Quem sabe aquilo não ficou registrado na cabeça dele.”
Walter também tem como irmãos Pedro e Fernando Moreira Salles. O primeiro integra a presidência do conselho de administração do Itaú Unibanco. O segundo é, entre outras coisas, um dos sócios da Companhia das Letras, uma das principais editoras do país.
O quarteto integra o conselho do IMS, o Instituto Moreira Salles, centro cultural com sedes no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Poços de Caldas, em Minas Gerais, e também tem uma fatia da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração, líder mundial na comercialização de nióbio. O minério, raro, tem todo tipo de uso, de ligas para a construção de pontes à fabricação de marca-passos.
Investimentos no setor energético, em transporte e na Alpargatas, fabricante dos chinelos Havaianas, completam a variada cartela de investimentos da família. Com João, Walter compartilha também a produtora Videofilmes, que está por trás de “Ainda Estou Aqui”.
Na outra ponta da árvore genealógica estão os dois filhos, Vicente, de 18 anos, e Helena, de 16 –enquanto o pai corria o mundo com “Ainda Estou Aqui”, ela viralizava com uma câmera menor em mãos, fazendo vídeos de TikTok. Ambos são fruto do casamento de duas décadas com a artista plástica Maria Klabin, herdeira da família que é a maior exportadora de papel do país.
Procurada para falar sobre o marido, Klabin recusou respeitosamente, explicando que havia entre eles um acordo para que não misturassem a vida profissional e a pessoal.
Fortes bases familiares e financeiras teriam ajudado Walter, acredita João, a trilhar o incerto caminho do cinema nacional, tão dependente de dinheiro público —”Ainda Estou Aqui”, ao contrário do que foi espalhado nas redes sociais por políticos de direita, não usou verbas da Lei Rouanet.
Diz também que o olhar social e humanista, termo que se repete nas bocas de muitos dos que trabalharam com Walter, são consequências de “viver no Brasil e não ser alheio a quem somos e ao que nos cerca”.
Essa curiosidade e sensibilidade foi o que aproximou Walter de Vinícius de Oliveira, o menino de “Central do Brasil” que hoje, aos 39 anos, rememora o primeiro encontro com o cineasta, enquanto engraxava sapatos no aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro.
Oliveira ficava de olho em homens trajados em ternos e sapatos sociais, mas Walter não era um deles. Decidiu abordar aquela figura de jeans e tênis porque o movimento, naquele dia, era fraco. Pediu um trocado e foi convidado para um lanche.
Entre as mordidas que davam nos sanduíches, o cineasta o convidou para fazer um teste. Depois de audições com 1.500 crianças em todo o Brasil, ele havia enfim encontrado o protagonista de “Central do Brasil”.
