Crianças podem ser psicopatas? Entenda
por BBC
A resposta mais curta para a pergunta que aparece no título desta reportagem é não: segundo os critérios utilizados atualmente na psiquiatria, crianças e adolescentes não podem ser classificados como psicopatas.
Como você vai entender ao longo da reportagem, isso tem a ver com uma série de questões éticas, estigmas históricos e debates entre especialistas que, no final das contas, geraram uma classificação e um nome diferente para um problema que já pode ser observado nos primeiros anos de vida.
Falamos aqui do “transtorno de conduta”, que aparece nos manuais de psiquiatria como um conjunto de “comportamentos severos que violam os direitos de outros ou as normas sociais”.
A boa notícia é que existem maneiras de diagnosticar essa condição no público mais jovem — e alguns tratamentos efetivos, que envolvem a família toda, podem ajudar a modificar comportamentos inadequados e até prevenir problemas mais sérios no resto da vida do indivíduo acometido pelo quadro.
Entenda a seguir quais são os traços de personalidade que podem sugerir um transtorno de conduta logo nos primeiros anos de vida, segundo as evidências científicas e o consenso entre especialistas.
O que é psicopatia
Para começar a entender o assunto, é preciso conhecer melhor o que de fato significa ser psicopata.
“A psicopatia é um diagnóstico clínico, definido a partir de uma combinação de fatores, como demonstrar menos emoções, uma ausência de remorso ou arrependimento, um certo charme e, ao mesmo tempo, uma impulsividade e um comportamento antissocial repetido”, resume a psicóloga Arielle Baskin-Sommers, professora associada da Universidade Yale, nos Estados Unidos.
“E todos esses atributos combinados fazem com que o indivíduo tenha um risco maior de violar normas, regras e leis”, complementa a especialista.
Em termos práticos, uma das ferramentas mais utilizadas para diagnosticar alguém com esse transtorno é a chamada Lista Revisada de Psicopatia de Hare, desenvolvida pelo psicólogo canadense Robert Hare a partir dos anos 1970.
Em resumo, esse instrumento é composto por 20 itens que ajudam a entender se uma pessoa tem traços de psicopatia ou não. A lista inclui:
- Eloquência e charme superficial;
- Senso grandioso de autoestima;
- Necessidade de estímulos e propensão ao tédio;
- Mentira patológica;
- Enganação e manipulação;
- Falta de remorso ou culpa;
- Afeto superficial;
- Insensibilidade e falta de empatia;
- Estilo de vida parasitário;
- Controles comportamentais precários;
- Comportamento sexual promíscuo;
- Problemas comportamentais iniciais;
- Falta de metas realistas e de longo prazo;
- Impulsividade;
- Irresponsabilidade;
- Falha em aceitar a responsabilidade por suas próprias ações;
- Muitos relacionamentos de curto prazo;
- Delinquência juvenil;
- Revogação de liberdade condicional;
- Versatilidade criminal.
Um profissional treinado nessa escala de Hare pode avaliar um paciente a partir de cada um desses 20 domínios. Quanto mais elevado for o resultado final da avaliação, maior a chance de essa pessoa ser de fato psicopata.
Um ponto importante aqui é que a psicopatia não está necessariamente sempre relacionada com a violência física e o cometimento de crimes.
“Em termos probabilísticos, alguém com psicopatia tem mais risco de ser violento. Mas há pessoas que são psicopatas e não se engajam em comportamentos de violência”, diferencia Baskin-Sommers.
“E, por outro lado, a vasta maioria dos indivíduos que são violentos não tem psicopatia. Estima-se que esse transtorno afeta 1% da população geral. E, mesmo dentro do sistema penal, a prevalência de psicopatia fica ao redor de 25%”, calcula ela.
“Ou seja, entre sujeitos que estão no sistema penal a psicopatia é mais comum, mas ela não é majoritária nem mesmo nesse contexto.”
O ‘sumiço’ da psicopatia
Mas há um problema nessa definição de psicopatia, pelo menos do ponto de vista clínico, na hora em que o diagnóstico é feito no consultório.
Os mais recentes consensos da área, como a 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtorno Mentais (DSM-5), publicado pela Associação Americana de Psiquiatria e reconhecido como um dos principais guias dessa especialidade médica, aboliu o termo “psicopatia”.
Atualmente, o diagnóstico que mais se aproxima a esse quadro é o chamado “transtorno de personalidade antissocial”.
Segundo a associação americana, pessoas com esse quadro “podem repetidamente desconsiderar ou violar os direitos dos outros, mentir, enganar ou manipular, agir impulsivamente ou desconsiderar a segurança de si próprios ou de outros”.
“Elas podem ter problemas com uso de drogas ou álcool, violar a lei e normalmente não demonstram remorso ou culpa”, complementa a entidade.
Uma mudança parecida ocorreu na versão mais recente da Classificação Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde, que abarca a psicopatia de forma mais indireta, num rol de “transtornos de personalidade”.
Segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, essas mudanças de conceitos trazem o foco do diagnóstico dessas condições para o comportamento antissocial do paciente — e deixam de lado os traços de personalidade que são mais difíceis de medir objetivamente, como a insensibilidade.
A mudança de nomenclatura gerou críticas e muitos debates entre especialistas. A psicóloga Abigail Marsh, professora de neurociência da Universidade Georgetown, nos EUA, cita os estigmas como um fator por trás da mudança.
“Certas condições são tão estigmatizadas que, independentemente do nome que receberem, continuarão a enfrentar barreiras e problemas”, avalia a especialista, que também é cofundadora da Psychopathy Is, uma das únicas associações a fomentar estudos e campanhas de conscientização sobre psicopatia.
“Em vez de ficarmos mudando os nomes de tempos em tempos, seria melhor educar as pessoas sobre a natureza desses transtornos, para desfazer mitos e medos que persistem na sociedade”, opina ela.
Temos, então, dois cenários: do ponto de vista “oficial” e burocrático, na hora de fazer o diagnóstico no consultório e liberar eventuais tratamentos por planos de saúde, os médicos precisam usar os critérios que descrevem o transtorno de personalidade antissocial, como rege o DSM ou o CID.
No entanto, em alguns desses episódios, caso o paciente apresente alguns traços específicos, é possível aprofundar um pouco mais a avaliação clínica e, com o auxílio de ferramentas como a lista de Hare, investigar a possibilidade de uma psicopatia (embora esse termo não apareça mais nos manuais da área).
Os métodos de diagnóstico específicos da psicopatia também são muito usados no contexto de pesquisas científicas, que tentam entender melhor as origens genéticas, neurológicas e ambientais desse distúrbio.
O que é transtorno de conduta
Como mencionado anteriormente, o tal transtorno de personalidade antissocial só pode ser diagnosticado em pacientes maiores de 18 anos.
Mas isso não quer dizer que alguns indícios de psicopatia não possam ser observados antes, entre a infância e a adolescência.
“É possível verificar alguns pontos, como a ausência de manifestações emocionais, em crianças bem jovens, aos cinco ou seis anos”, diz o pesquisador James Blair, professor de Psiquiatria Translacional da Universidade de Copenhague, na Dinamarca.
“Naturalmente, quanto mais jovem for o indivíduo, mais difícil é diferenciar as possíveis causas e os transtornos”, complementa ele.
O pesquisador Luke Hyde, professor de psicologia da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, pondera que essas suspeitas de um distúrbio psiquiátrico em crianças e adolescentes devem ser analisadas com muito cuidado — e com o auxílio de um profissional especializado na área.
“Diversas pesquisas mostram que muitos dos jovens que apresentam características compatíveis com a psicopatia aos 15 anos deixam de atender a esses mesmos critérios mais tarde, quando têm 21 ou 22 anos”, observa ele.
“Por isso, precisamos ter muito cuidado, pois um diagnóstico desses pode estigmatizar esses indivíduos.”
O especialista lembra aqui do transtorno de conduta, que pode ser detectado no público com menos de 18 anos
“Esse distúrbio está mais relacionado a questões como quebrar as regras ou agressões repetidas. O DSM-5 explica que esses pacientes apresentam emoções pró sociais limitadas, vistas numa certa falta de sensibilidade”, resume ele.
Mas há sinais que podem ser observados na prática?
“Algumas crianças [com transtorno de conduta] são muito destemidas, têm níveis baixos de medo diante de ameaças ou não param de fazer coisas pelas quais são repreendidas ou punidas”, exemplifica Marsh.
A especialista destaca que, nesse contexto, a punição não envolve nada drástico ou violento. Elas incluem conversas ou intervenções simples que pais e responsáveis fazem rotineiramente para que seus filhos não tenham comportamentos inadequados ou arriscados — como, por exemplo, pedir que a criança não coloque o dedo no buraco da tomada uma segunda vez.
“Alguns indivíduos nascem com níveis muito baixos de sensibilidade à punição. Daí elas não temem as possíveis repreensões e não modificam o comportamento”, destaca Marsh.
“Com o passar do tempo e a falta de resposta, os pais podem se frustrar e isso gera um ciclo de comportamentos cada vez piores, com agravamento de insensibilidade e impulsividade, que podem desembocar em psicopatia mais tarde em algumas pessoas”, raciocina a especialista.
Marsh avalia que os pais precisam conhecer minimamente os comportamentos considerados adequados para cada faixa etária.
“Há casos em que a criança faz o que é esperado para alguém com três anos de idade. Mas há outras situações em que já é possível notar algum sinal de transtorno”, pontua ela.
Entre os principais pontos de atenção, a psicóloga destaca a insensibilidade à punição, o destemor (não demonstrar medo diante de ameaças) e uma certa falta de afeição no contato com os outros.
“E, conforme a criança cresce, é possível observar que ela costuma quebrar muitas regras e não demonstra empatia”, complementa a especialista.
Transtorno de conduta hoje, psicopatia amanhã?
No entanto, de acordo com os pesquisadores, um erro comum por aqui é pensar que jovens diagnosticados com transtorno de conduta estão praticamente condenados a virarem psicopatas no futuro.
“A insensibilidade e os outros traços emocionais desse distúrbio são apenas um fator de risco para a psicopatia”, esclarece Hyde.
O psicólogo compara o possível vínculo entre os dois problemas com a relação estabelecida entre pressão alta e infarto.
“Quem tem hipertensão corre mais risco de sofrer uma parada cardíaca. Mas falamos aqui de uma probabilidade, não de algo que vai necessariamente acontecer”, detalha ele.
“Provavelmente, um número muito reduzido de crianças com transtorno de conduta serão psicopatas na vida adulta, assim como uma quantidade pequena de hipertensos infarta”, pondera ele.
“Mas fazer esse diagnóstico nos primeiros anos de vida pode ser uma boa maneira de identificar os casos que vão se beneficiar de tratamentos e estratégias preventivas”, complementa o psicólogo.
Intervenções precoces são efetivas
Mas o que pode ser feito nesses casos? Que terapias estão disponíveis para ajudar crianças e adolescentes com transtorno de conduta?
“É mito que psicopatia ou transtornos de personalidade não podem ser tratados”, diz Marsh.
“Nesses casos, temos abordagens muito efetivas, que frequentemente envolvem também os pais e os cuidadores”, responde Baskin-Sommers.
“A ideia aqui é ensinar os responsáveis por aquele jovem a criar estratégias para conversar sobre as emoções e criar limites em termos de comportamento”, diz a pesquisadora.
Essa intervenção, chamada comumente de “terapia guiada pelos pais” ou “treinamento de gerenciamento parental”, conta com a participação de um terapeuta que, durante as sessões conversa, orienta e instrui os responsáveis por aquelas crianças com transtorno de conduta sobre a melhor maneira de lidar com o dia a dia.
A meta, claro, é trabalhar aos poucos as atitudes e as emoções dos mais jovens, para que os sintomas (insensibilidade, impulsividade, agressividade…) melhorem aos poucos.
“A ideia é oferecer aos pais uma série de habilidades especiais para lidar com uma criança cujo cuidado é mais desafiador”, resume Hyde.
“Já nos adolescentes, podemos usar a terapia multissistêmica, que envolve os pais, membros da comunidade e o próprio jovem que apresenta comportamentos mais extremos.”
“Há também a possibilidade de trabalhar questões específicas, como a raiva e as agressões”, complementa ele.
Marsh aponta que, embora os métodos de psicoterapia sejam a primeira linha de intervenção, alguns casos também se beneficiam de medicações.
“Temos algumas evidências, ainda iniciais, que remédios usados no transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e alguns estabilizadores de humor podem ajudar”, conta a pesquisadora.
Blair reforça que as intervenções precoces são efetivas e podem surtir resultados positivos durante a vida toda daquele indivíduo.
“É muito mais fácil modificar o comportamento de uma criança de cinco ou seis anos do que de um indivíduo de 29 ou 30”, avalia ele.
“Nós precisamos ajudar e dar a essas pessoas e suas famílias ferramentas para que elas possam ter uma vida feliz e cheia de possibilidades.”
“Isso é bom para elas mesmas e, claro, para toda a sociedade”, conclui ele.