Devia R$ 500 mil: ‘Perdi minha irmã para o vício em jogo do aviãozinho’

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Na foto, Ângela, Jéssica e a mãe

Jéssica Lobo, 31, viu a vida mudar depois que sua irmã mais velha morreu. Ângela da Paz, 39, tinha vício em jogos de cassino on-line e estava endividada. Desde então, a autônoma tem feito publicações nas redes sociais para compartilhar a história da irmã, na tentativa de conscientizar apostadores.

O que aconteceu

Ângela Maria Camilo da Paz tirou a própria vida em Missão Velha (CE), em 12 de dezembro de 2023. Ela havia perdido uma quantia significativa de dinheiro pelo vício em jogos, como Crash, conhecido como “jogo do aviãozinho”, e Fortune Double, todos da empresa Blaze.

Segundo Jéssica, a irmã contraiu uma dívida de mais de R$ 500 mil em empréstimos e cartões de crédito, mas o valor pode ser ainda maior. Ângela também tinha feito empréstimos com familiares e amigos. A família só soube do vício em jogos após a morte da mulher.

“Descobrimos tudo após a morte dela. Eu morava em São Paulo há quase 8 anos, vim para empreender em uma esmalteria e visitava minha família no Ceará uma vez por ano. Foi uma bomba para nós. Vimos pelo aplicativo que ela fazia depósitos todos os dias. Encontrei 55 páginas de depósitos no histórico do jogo, cada página com cerca de 40 depósitos. Os valores variam muito, mas a maioria é de R$ 100 e feitos diversas vezes por dia. No nome da minha mãe tem mais de R$ 150 mil entre empréstimos e cartões de crédito.” — Jéssica Lobo.

Ângela também era autônoma, mantinha uma loja de roupas e era responsável por administrar o dinheiro da aposentadoria da mãe, Zildene Maria. O vício pode ter começado em 2022. Jéssica comenta que foi nessa época que sua irmã lhe mostrou que começou a jogar nas casas de apostas on-line.

Ela alertou Ângela que poderia perder dinheiro com isso. Na época, segundo Jéssica, a irmã argumentou que estava lucrando muito. Os meses passaram e elas se distanciaram após uma discussão. Jéssica voltou ao Ceará após saber da morte da irmã. Ângela era mãe solo e deixou três filhos, de 18, 11 e 7 anos.

“Ela morava com a minha mãe e os filhos e não deixou nenhuma carta de despedida. A água e a luz acabaram sendo cortadas e não tinha um pacote de arroz na casa. Foi bem difícil no primeiro mês, recorremos a doações. Agora, todos nós estamos tentando viver um dia de cada vez. Como sou manicure, estou tentando exercer esse trabalho de forma autônoma aqui para cuidar deles”.

Grupo de ajuda

Logo depois da tragédia familiar, Jéssica criou um grupo em um aplicativo de mensagens com mais de 100 pessoas que lidam com o vício em jogos de azar e que tiveram perdas significativas de dinheiro. A maioria delas são mulheres e mães solo.

Seu objetivo é dar conforto para essas pessoas e, no futuro, facilitar o auxílio psicológico por meio de parcerias com profissionais de saúde mental para resgatá-las do vício. Jéssica também lidera protestos contrários às apostas on-line.

“Penso que nesse mundo podem ter pessoas que estão sofrendo assim como a minha irmã. Tento abrir o máximo de mensagens possíveis que recebo nas redes sociais para conversar e ouvir essas pessoas e direciono para o grupo. Lá, eles percebem que é um vício que precisa ser tratado e que tem outros nessa situação. O meu trabalho é de formiguinha, mas é algo muito importante. Parece um número pequeno, mas olhando para a história de cada um, é uma triste realidade.” — Jéssica Lobo.

Jéssica acredita que a irmã entrou em um ciclo. “Ela começou a perder e continuou jogando na esperança de recuperar o que perdeu.”

“O jogo deu dinheiro para ela no começo e isso a fez ficar mais e mais. Eu acho que ela via ali uma forma de ter uma vida mais tranquila financeiramente, afinal, é isso que as casas de apostas on-line e os influenciadores digitais que as divulgam promovem na internet”.

Segundo a família, Ângela não era diagnosticada com depressão e não fazia uso de nenhum medicamento controlado. A família acredita que ela se desesperou por não conseguir pagar as dívidas.

A Polícia Civil do Ceará informou que a morte foi registrada como suicídio e que investiga o caso.

Questionada sobre um possível processo contra a Blaze, Jéssica disse que pensa em buscar Justiça. “Já tentamos algumas vezes, porém todos os advogados que encontramos cobram um valor inicial para começar o processo, valor que no momento não conseguimos.”

A reportagem tentou contato com a Blaze por email e rede social, mas não obteve retorno. O espaço segue aberto para manifestação.

Vício em jogos de azar e saúde mental

Os jogos de azar online promovem uma série de impactos negativos na vida dos jogadores e de quem convive com eles, diz Karen Scavacini, psicóloga e mestre em saúde pública na área de promoção de saúde mental e prevenção ao suicídio pelo Karolinska Institutet, da Suécia.

O vício pode levar a mudanças de comportamento como isolamento social, problemas financeiros, mentiras e até problemas de saúde mental como depressão e ansiedade.

“A pessoa com vício em jogos de azar passa a fugir de responsabilidades, sejam elas pessoais ou profissionais. Perde a noção de quantas vezes joga, não consegue parar, o que traz problemas. Mas, é importante ter ciência de que existem grupos de apoio para tratar vícios em geral, grupos gratuitos e grupos online, e tem, claro, o psicólogo. Em alguns casos, é necessário internação, dependendo do impacto no dia a dia. Vale então também apoiar que essa pessoa vá em busca de um profissional, que ela tenha um tratamento, entendendo que será um tratamento longo.” — Karen Scavacini.

A especialista explica que é fundamental reconhecer o vício e procurar ajuda profissional. Para a psicóloga, é extremamente importante que as pessoas não julguem ou minimizem o problema.

“No caso dos jogos de azar, eles foram feitos para viciar, com um design próprio para isso. Jamais diga para uma pessoa viciada que ela é fraca, que tudo o que está acontecendo é culpa dela. É fundamental fazer um tratamento. Também não faça chantagens como ‘Você joga porque não me ama’. Você pode dizer coisas como: ‘eu me importo com você’, ‘estou aqui para você’, ‘Há pessoas que podem te ajudar, vamos juntos onde tem essa ajuda’. Sempre demonstre que está preocupado, mas de uma forma compreensiva.” — Karen Scavacini.

No contexto das mães solo, a especialista alerta e incentiva a busca por formas mais construtivas de garantir um futuro melhor para si e para os filhos e também aponta uma necessidade de uma discussão mais ampla sobre o impacto das apostas on-line.

Jogos de azar on-line são ainda mais complexos do que os presenciais porque a pessoa não precisa nem sequer sair de casa para jogar. Ela se esconde em qualquer tela que tiver e é muito difícil que a família saiba o que está acontecendo. É um acesso muito facilitado, com muita propaganda. Isso precisa ser fiscalizado porque as pessoas estão contraindo dívidas, vícios e uma série de outros riscos para a saúde mental.

Procure ajuda

Caso você esteja pensando em cometer suicídio, procure ajuda especializada como o CVV (Centro de Valorização da Vida) e os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente.

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