Empresas com donos na lista suja do trabalho escravo receberam R$ 1,6 milhão do governo federal

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Do lado de colchonetes amontoados, trabalhador improvisa com tijolos um fogão para preparar comida. — Foto: Reprodução/ Ministério do Trabalho e Emprego

Duas empresas contratadas por diferentes órgãos do governo federal têm os nomes de seus donos ou sócios na lista suja do trabalho escravo. Somados, os contratos totalizam R$ 1.617.267,49.

Os donos de uma fornecedora de alimentos e de uma empresa de radiodifusão entraram na lista suja entre 2023 e 2024 por deixarem funcionários em condições insalubres de trabalho. Entre as irregularidades, estão falta de salário e ausência de banheiro para os trabalhadores.

Nos casos listados, nenhum dos empresários foi condenado judicialmente por manter os trabalhadores em condições degradantes. Por isso, os contratos celebrados com os ministérios não são barrados pela Lei de Licitações.

Os dados são de um cruzamento feito pelo portal g1 entre os contratos do Governo Federal presentes no Portal da Transparência e as 717 pessoas e empresas listadas na mais recente edição da lista suja do trabalho escravo, divulgada em abril de 2024 pelo Ministério do Trabalho e atualizada em dezembro.

No mesmo período em que entraram para a lista suja, os proprietários das empresas autuadas também prestaram serviços para a Universidade Federal do Paraná (UFPR), a Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e o Instituto Federal Baiano (IF Baiano) com repasses do Ministério da Educação, além do Ministério da Saúde, Ministério da Defesa e a Secretaria de Comunicação da Presidência da República.

Os empresários são:

  • Pedro Alexsandro Alvino Bastos: empregou trabalhadores que atuavam na construção de uma obra em Feira de Santana (BA) e foi incluído na lista suja em 05 de outubro de 2023. Após aparecer na lista, entre outubro de 2023 e agosto de 2024, ele prestou serviços de fornecimento de alimentos por outra empresa, da qual é o único dono, a Palacetur Eventos Comércio e Serviços LTDA, para os Ministérios da Educação, da Defesa e da Saúde no valor de R$1.615.918,12. Em resposta, Bastos diz que recorreu e que sua outra empresa não atua em condições análogas à escravidão.
  • Paulo Celso Fonseca Marinho: foi incluído na lista suja em 5 de outubro de 2023 por manter trabalhadores da Fazenda Estrela, em Caxias (MA), em condições degradantes. No mesmo período, teve a empresa Veneza de Radiodifusão, da qual também é sócio, contratada pela Secretaria de Comunicação para transmissão de propagandas de projetos do governo pelo valor de R$ 483,72. Marinho rebate as notas fiscais do Portal da Transparência e diz que sua empresa nunca teve contrato, nem prestou serviços ao governo federal. Ele afirma ainda que recorreu da autuação contra sua empresa.

Lista suja

A lista suja foi criada em 2003 e tem como objetivo combater o trabalho escravo no Brasil, funcionando como uma ferramenta de transparência e prevenção. Atualizada semestralmente, ela registra empresas e indivíduos flagrados mantendo trabalhadores em condições análogas à escravidão.

A inclusão na lista ocorre após fiscalização do Ministério do Trabalho, que autua os envolvidos e não tem vínculo com condenações judiciais, que dependeriam de processos na Justiça do Trabalho.

Como nenhum dos empresários foi condenado judicialmente, os contratos celebrados com os ministérios não são barrados pela Lei de Licitações.

“No desenho que nós temos hoje, infelizmente, não é ilegal a celebração de contratos com essas empresas. Poderia ser algo a ser pensado pelo Congresso, e isso reforçaria o sistema de proteção dos trabalhadores contra o trabalho análogo à escravidão, mas hoje é necessária uma decisão judicial condenatória. Então, a mera autuação não gera esta repercussão de impedir a contratação”, explica o professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Wallace Corbo.

Sem banheiro para funcionários

Trabalhador resgatado dormia em cama improvisada com estrado de madeira e isopor. — Foto: Reprodução/ Ministério do Trabalho e Emprego
Trabalhador resgatado dormia em cama improvisada com estrado de madeira e isopor. — Foto: Reprodução/ Ministério do Trabalho e Emprego

Em 2020, Pedro Alexsandro Alvino Bastos foi responsável pela construção de um motel em Feira de Santana (BA), onde dez trabalhadores foram encontrados em condições degradantes, morando em alojamento improvisado há oito meses, sem banheiro, nem local para realizar as refeições, e com camas improvisadas de tijolo e de pedaços velhos de madeira e papelão.

Os auditores também constataram riscos de incêndio e choque elétrico. A fiscalização também constatou que nenhum dos funcionários contratados por Bastos era registrado. Eles trabalhavam 9 horas por dia, ganhando de R$ 50 a R$ 100 por dia de trabalho.

Em razão disso, o órgão interditou a obra e fez 35 autuações contra Bastos. Ele foi adicionado à lista suja em 5 de outubro de 2023.

Meses após o registro na lista, Bastos recebeu R$ 1,6 milhão por contratos firmados entre a empresa Palacetur Eventos, da qual é sócio-administrador, com a Universidade Federal do Paraná (UFPR), a Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e o Instituto Federal Baiano (IF Baiano). Os repasses foram feitos pelos ministérios da Educação, da Saúde e da Defesa para fornecimento de refeições e lanches.

O contrato firmado por licitação com a UFGD está em vigor até novembro de 2025.

Sem ármarios, alimentos dos trabalhadores eram apoiados em estantes improvisadas. — Foto: Reprodução/ Ministério do Trabalho e Emprego
Sem ármarios, alimentos dos trabalhadores eram apoiados em estantes improvisadas. — Foto: Reprodução/ Ministério do Trabalho e Emprego

Desde 2014, antes de sua autuação por trabalho análogo ao escravo, a empresa de Bastos soma mais de R$ 6 milhões em contratos firmados com o governo federal.

Pedro Alexsandro Alvino Bastos considera a autuação “injusta” e está recorrendo da decisão. Ele afirmou que a contratação dos funcionários foi feita por um terceiro e reconhece os contratos com os ministérios, mas nega qualquer relação com a operação de trabalho análogo à escravidão.

Os ministérios da Saúde e Defesa foram contatados, mas não retornaram até a publicação desta reportagem.

O Ministério da Educação afirmou que as universidades e institutos federais têm autonomia para realizar contratações conforme suas necessidades.

A Universidade Federal do Paraná informou que contratou a empresa por licitação antes de sua inclusão na lista suja e afirmou que, se a licitação fosse hoje, a empresa não seria contratada.

A UFGD disse que o primeiro contrato com a empresa ocorreu antes da inclusão na lista suja e que renovou o contrato posteriormente, alegando que toda a documentação estava em conformidade com a legislação vigente.

Resgate de trabalhadores

Alimentos eram guardados em uma geladeira "velha, suja, e com presença de ferrugem", segundo relatório da operação. — Foto: Reprodução/ Ministério do Trabalho e Emprego
Alimentos eram guardados em uma geladeira “velha, suja, e com presença de ferrugem”, segundo relatório da operação. — Foto: Reprodução/ Ministério do Trabalho e Emprego

Paulo Celso Fonseca Marinho foi autuado em 2020 pelo Ministério do Trabalho por manter 12 trabalhadores em condições análogas à escravidão Fazenda Estrela, em Caxias (MA). Cinco trabalhadores que moravam na propriedade foram resgatados, e segundo o relatório do Ministério do Trabalho, Marinho teria ameaçado auditores fiscais que participaram da operação.

Ele, que também foi prefeito de Caxias de 1993 a 1997, entrou para a lista suja em 5 de outubro de 2023.

Segundo a fiscalização, a fazenda não oferecia condições de higiene e salubridade para o preparo adequado de alimentos. Não havia água limpa disponível em quantidade suficiente para higienização do local e de alimentos.

Após esse registro, Marinho prestou serviços para o Ministério da Saúde e para a Secretaria de Comunicação da Presidência, somados no valor de R$ 483,72, através da empresa Veneza de Radiodifusão, para transmissão de propagandas de projetos do governo.

Além da fazenda e da empresa de comunicação, Marinho tem outra empresa contratada pelo Governo Federal. Ao todo, entre 2014 a 2024, os contratos chegam a R$ 26 milhões. Uma das empresas presta serviço de difusão de propaganda e a outra é responsável pela Concessão de Financiamento Estudantil na Faculdade do Vale do Itapecurú, em Caxias (MA).

Procurado, Marinho afirma que recorreu da decisão que caracterizou o trabalho na Fazenda Estrela como análogo à escravidão. “Houve uma ida irregular de um fiscal do MT [Ministério do Trabalho]”, diz ele. “Espero que a justiça repare o erro proposital do fiscal”.

Açude próximo era utilizado por trabalhadores para banho, lavagem de roupas e vasilhas para prepraro de refeições. — Foto: Reprodução/ Ministério do Trabalho e Emprego
Açude próximo era utilizado por trabalhadores para banho, lavagem de roupas e vasilhas para prepraro de refeições. — Foto: Reprodução/ Ministério do Trabalho e Emprego

Em relação à quantia recebida pelos serviços prestados em sua outra empresa, a Veneza de Radiodifusão, o empresário afirma que não reconhece os valores referidos à Secretaria de Comunicação da Presidência da República e nem ao Ministério da Saúde. “Esses pagamentos não foram feitos a nossa empresa pelo governo federal com quem não mantemos nenhum tipo de relacionamento comercial”.

A Secretaria de Comunicação (Secom) informou que, na época dos pagamentos, não sabia da inclusão de Marinho na lista suja de empregadores.

A Secom explicou que a empresa está cadastrada no Midiacad e atua como afiliada de um veículo de comunicação, participando de campanhas institucionais por meio de agências de publicidade contratadas em processos públicos.

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