No velório do irmão, reação de mulher ao ver o tio revelou à família antigos abusos; ‘Comecei a gritar’

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Imagem ilustrativa. Foto: Reprodução

Por Thaís Espírito Santo, g1 Rio

Foi num momento de dor para a família inteira que Fernanda (nome fictício) se viu obrigada a expor para todos uma ferida particular que sentia desde a infância: a de que foi vítima de abuso sexual.

Essa revelação foi feita há 15 anos, no velório do irmão de Fernanda, morto por PMs. Parentes choravam e tentavam se consolar com abraços. Até que um homem se aproximou de Fernanda e fez menção de acolhê-la. Imediatamente vieram as memórias das violações, e ela o repeliu, gritando:

“Sai de perto de mim! Você abusou de mim, sai daqui!”.

Esse homem era um tio, irmão da mãe dela.

Fernanda tinha 24 anos na época. Pelo que se lembra, no último abuso feito por ele, ela estava com 12 anos. Mas todo esse tempo não fez a dor passar.

“Quando eu vi que era ele, comecei a gritar. Até ali, eu nunca tinha contado para ninguém, achava que era uma coisa muito vergonhosa”, afirmou ao site g1.

O desabafo, porém, trouxe mais dor para Fernanda.

Ninguém acreditou em mim. Minha mãe falava: ‘Você não vai fazer isso com seu tio não, você é a sobrinha que teu tio mais gosta’”, relembra.

“Meu tio, irmão da minha mãe, era muito agradável. Ele brincava muito, conquistava a gente na brincadeira. Ele costumava dizer que eu era a sobrinha preferida. Naquela época, a gente não tinha telefone, TV, nada, eu fazia dança, brincava como criança raiz na rua”, conta ela.

Ela lembra que a mãe nunca tinha explicado o que era sexo nem dado informações que a deixassem mais segura, como quem pode ter acesso ao corpo dela ou não. Esse conhecimento, Fernanda fez questão de passar para as 3 filhas.

“Meu tio brincava muito com a gente, até que ele começou a me levar para a casa dele. Ele passava a mão, alisava meu peito, tirava minha calcinha”, conta a vítima. Ela ainda lembra detalhes do que o tio fazia, mas confessa que a mente bloqueou parte das memórias mais dolorosas.

“Ele dizia: ‘Não conta para a sua mãe a nossa brincadeirinha’Para mim, era normal”, relembra.

“Até que eu já tinha de 11 para 12 anos, e ele ainda abusando de mim. Foi aí que eu comecei a entender. Minha mãe falava para eu ir com ele, e eu não queria ir. Ele chegava, e eu me escondia. E minha mãe dizendo que ele gostava tanto de mim, e eu tendo aquele comportamento”, completa.

Arte elaborada pelo g1 sobre os casos de abuso sexual infantil em 2023

Quando ela contou, no velório, a mãe disse que não acreditava nela. Anos depois, quando uma das netas confrontou a avó pela falta de apoio a Fernanda, a avó disse que se sentia envergonhada por o irmão ter feito aquilo.

“No ano passado, conversando com a minha irmã, ela disse assim: ‘Ah, ele abusou de você, mas depois que ele parou de te abusar, ele abusou de mim’. Minha irmã é 3 anos mais nova do que eu. Ele se aproveitou por ser mais nova, por não ter instrução”, lamenta a vítima.

Na época, elas moravam em um complexo de comunidades do Rio de Janeiro.

“Eu tinha muita vergonha. Eu tinha uma raiva tão grande que a minha vontade era ir aos traficantes e contar tudo que ele fez. Mas, se eu fizesse isso, iam tirar a vida dele. Para que eu ia me envolver naquilo? Viver a vida com o peso da morte de alguém em mim?”, questiona a moça.

Ela acredita que não ficou inerte no trauma e presa somente a isso porque tinha muita vontade de sair da comunidade. Ela entendia que só seria possível através dos estudos e de muito trabalho.

Envolvia-se em projetos comunitários e religiosos, dançava, estudava e aos 14 já trabalhava para ajudar a mãe. Ela afirma que estudar foi a chave central para enfrentar seu trauma.

“As mães têm que perceber mais o comportamento dos filhos, quem está ali no entorno, e ter diálogo com as crianças sobre sexo. Assim, a criança vai saber que se alguém tocar nela, é com maldade, que tem que correr, contar para os adultos”, destaca a vítima.

Principais comportamentos de crianças abusadas

O site g1 procurou especialistas para mapear os principais sintomas que as crianças apresentam e no que ficar de olho no comportamento dos pequenos.

Para a psicóloga Nathália Freitas, do programa Empoderadas, da Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos do Governo do Estado do Rio de Janeiro, o principal é se a criança tem um desenvolvimento normal e, de repente, começa a regredir sem motivo aparente.

Uma doença na família poderia ser um fator para a regressão, por exemplo, mas, se não há nada externo que possa afetar a criança, é bom prestar mais atenção.

A professora titular do departamento de Pediatria da Uerj indica que as crianças e adolescentes podem apresentar distúrbios de humor sem motivo aparente e dificuldades na escola.

“Alterações no sono e no apetite e passar a ter comportamentos mais retraídos também são indícios”, explica Stella Regina Taquette.

Veja lista com outros sintomas:

  • Dificuldade no controle esfincteriano;
  • Comportamentos agressivos;
  • Automutilação;
  • Uso abusivo de drogas;
  • Atitudes sexualizadas impróprias para a idade;
  • Brincadeiras que permitam toques indevidos;
  • Interesse repentino por questões sexuais ou brincadeiras de cunho sexual, com palavras ou desenhos que se refiram às partes íntimas;
  • Lesões ou edemas na região genital/anal sem doenças que justifiquem;
  • Lesões na boca ou garganta, decorrentes de sexo oral;
  • Sangramentos vaginais ou anais;
  • Infecções urinárias de repetição;
  • Rompimento de hímen;
  • Gravidez ou aborto precoce.

Arte elaborada pelo g1 sobre principais comportamentos de crianças que estão sendo vítimas de abuso

A professora da Uerj Débora de Aguiar Lage explica que vergonha e medo acentuados também são comportamentos típicos das crianças que são vítimas de algum abuso.

Para a doutora Lage, desenhos que indiquem órgãos sexuais ou algum teor do tipo devem acender todos os alertas em pais e responsáveis.

Além dos sintomas físicos, alguns indícios comportamentais, como os que a Fernanda teve, devem ser levados em conta, como:

  • Medo ou pânico em relação a alguém do convívio;
  • Dependência emocional em relação aos adultos de referência;
  • Medo exagerado do escuro ou locais fechados;
  • Regressão a comportamentos infantis, como xixi na cama e chupar dedo;
  • Masturbação e interesse sexual repentinos, fora do desenvolvimento natural;
  • Isolamento social e falta de confiança nas pessoas;
  • Negligência com a própria segurança e/ou higiene;
  • Excesso de raiva ou irritabilidade inexplicáveis;
  • Frequentes fugas de casa ou baixa frequência escolar.

E como podemos proteger as crianças?

Os especialistas destacam que diálogo e conhecimento são os pontos chaves para proteger as crianças de uma forma mais eficaz.

“É muito fácil uma criança ter a percepção de quando é uma brincadeira ou não. Quando é brincadeira, todos acham legal. Então, quando existe um constrangimento, mesmo que seja num tom de alegria, de brincadeira, de confiança, é o momento de essa menina entender que tem algo de errado, de muito errado”, explica a especialista em segurança feminina Erica Paes.

Ela é idealizadora do Programa Empoderadas. No programa, mulheres vítimas de violência recebem instruções de desvencilhamento e fuga, além de defesa pessoal.

Crianças também são inscritas nas aulas e aprendem tanto algumas lutas, como educação sexual básica para se defender.

O diálogo precisa ser bem assertivo com os pequenos: é preciso ensinar o que pode e o que é totalmente proibido. Dar nomes claros aos órgãos sexuais também ajuda as crianças a não serem enganadas por possíveis abusadores.

A especialista Erica afirma que os agressores costumam ser queridos e brincalhões com as vítimas, além de fazerem parte do ciclo social.

“É preciso mostrar para essas crianças que elas podem confiar na professora, na diretora, confiar na escola, confiar em pessoas que estão ali fazendo parte da rede da educação para essa menina”, explica a superintendente de Equidade de Gênero do governo do RJ, Erica.

Sem acolhimento, muitas vezes as vítimas duvidam se estão passando por aquilo mesmo ou se é algo da cabeça dela, segundo Paes.

“Eles são brincalhões, supersimpáticos. Eles são queridos pelo ambiente, a ponto de falarem ‘Não, não é possível que ele iria fazer isso’, caso aconteça algo fora do controle, justamente para deslegitimar a palavra da menina”, afirma Paes.

A pediatra Stella explica ainda que as crianças costumam ter dificuldade para verbalizar seus sentimentos – bons e ruins. Por conta disso, as famílias devem manter o diálogo sempre próximo dos pequenos e acompanhar o desenvolvimento deles.

“As famílias devem acompanhar o desenvolvimento de seus filhos dando proteção e autonomia na medida em que vão crescendo e adquirindo habilidades e competências para se cuidarem sem a ajuda dos pais. Falar sempre a verdade, responder aos questionamentos dos filhos e garantir a educação deles já é um grande passo”, indica a médica.

Saiba onde denunciar casos de abuso sexual

  • Polícia Militar – 190: quando a criança está correndo risco imediato
  • Samu – 192: para pedidos de socorro urgentes
  • Delegacias especializadas no atendimento de crianças ou de mulheres ou qualquer delegacia de polícia
  • Disque 100: recebe denúncias de violações de direitos humanos. A denúncia é anônima e pode ser feita por qualquer pessoa
  • Conselho tutelar: todas as cidades possuem conselhos tutelares. São os conselheiros que vão até a casa denunciada e verificam o caso. Dependendo da situação, já podem chegar com apoio policial e pedir abertura de inquérito.
  • Profissionais de saúde: médicos, enfermeiros, psicólogos, entre outros, precisam fazer notificação compulsória em casos de suspeita de violência. Essa notificação é encaminhada aos conselhos tutelares e polícia: disquedenuncia@sedh.gov.br
  • WhatsApp do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos: (61) 99656- 5008
  • Unidades do Ministério Público

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