Nova sede da Amazon provoca disputa entre nativos sul-africanos

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Um segurança patrulha uma rua residencial perto do canteiro de obras da sede africana da Amazon na Cidade do Cabo, África do Sul, 12 de agosto de 2021. (Joao Silva/The New York Times)

Cidade do Cabo, África do Sul – Em uma faixa de terra gramada com vista para a pitoresca Montanha da Mesa desta cidade, um esquadrão de tratores amarelos limpou o terreno para um novo desenvolvimento comercial e residencial de US$ 300 milhões que gerou um debate na África do Sul devido não apenas à sua localização, mas também a seu principal inquilino: a gigante tecnológica Amazon.

Acredita-se que o local de 15 hectares, na confluência de dois rios, esteja quase todo na área onde os sul-africanos nativos lutaram pela primeira vez contra os invasores coloniais, e alguns líderes consideram o desenvolvimento uma profanação da terra sagrada. “Um bloco de concreto para uma sede da Amazon neste terreno é ofensivo e obsceno”, disse Tauriq Jenkins, que lidera cerca de duas dúzias de grupos nativos contrários ao desenvolvimento.

Mas nem todos os líderes concordam. Quando o chefe Zenzile Khoisan olha para a construção, vê uma vitória para seu povo: o desenvolvedor concordou em construir, ao lado dos escritórios da Amazon, um centro patrimonial contando a história do povo das Primeiras Nações do país, como alguns o chamam. “As grandes corporações ferraram as Primeiras Nações. Portanto, talvez a Amazon possa aprender alguma coisa”, declarou o chefe.

Líderes de grupos nativos na África do Sul estão agora presos em uma luta cruel pelo futuro de um pedaço de terra que está em “um dos locais mais historicamente significativos do país”, nas palavras da agência encarregada de proteger os lugares patrimoniais na província do Cabo Ocidental.

A batalha, que chegou aos tribunais, tem sido marcada por insultos, acusações e debates mais profundos sobre quem pode reivindicar a herança nativa autêntica e falar pela comunidade. As comunidades originais da África do Sul foram dizimadas ao longo dos séculos mediante o genocídio e a política racista do apartheid – por isso, agora não está claro quem tem autoridade para falar por esses povos.

O desenvolvimento do River Club, batizado em homenagem a um clube de golfe que existia anteriormente no local, também causou divisão dentro do governo. Alguns políticos apoiaram o projeto – a Cidade do Cabo saudou a Amazon por ter sido escolhida como “uma base de operações no continente africano”, vendo isso como um benefício econômico. Mas funcionários de agências locais de meio ambiente e patrimônio levantaram objeções.

Espera-se que um juiz do Tribunal Superior do Cabo Ocidental emita uma decisão em breve sobre uma petição apresentada por opositores, que argumentam que a construção deve ser interrompida porque o projeto não está em conformidade com as leis do patrimônio.

Os críticos também veem a repetição de um ciclo conhecido: os interesses dos ricos, e principalmente brancos, são satisfeitos, enquanto as comunidades marginalizadas ficam brigando entre si. Um tribunal do patrimônio provincial criticou os líderes do governo por empregar “a política de ‘dividir para governar'”.

Determinar a identidade nativa é difícil na África do Sul. Dezenas de milhares de anos atrás, um povo agora conhecido como San se desenvolveu a partir de comunidades pré-históricas, explicou Michael De Jongh, professor emérito de antropologia da Universidade da África do Sul. Os khoi se estabeleceram no país há dois mil anos. Então, a partir de cerca de 800 anos atrás, negros africanos de outros lugares do continente migraram para a África do Sul.

As comunidades foram desmembradas ao longo de muitos anos, por isso ser nativo na África do Sul se tornou uma questão de se identificar com a cultura e praticar as tradições, em vez de provar a ancestralidade. Nas últimas décadas, um ressurgimento global do interesse por esses povos ajudou a impulsionar a formação de uma miríade de grupos sul-africanos reivindicando a herança das Primeiras Nações. O Parlamento aprovou uma lei em 2019 que permite que os grupos solicitem reconhecimento oficial. Muitas populações alegaram ser líderes das Primeiras Nações.

Khoisan, de 60 anos, que se identifica como chefe do Conselho Cultural de Gorinhaiqua, argumentou que Jenkins estava sendo usado como porta-voz da associação de moradores majoritariamente brancos e antidesenvolvimento de Observatory, o subúrbio que circunda o local. Também disse que Jenkins não era realmente nativo, mas sim do Zimbábue, e que seus aliados eram um pequeno grupo de “fingidores”. “Muitos deles são liderados por chefes com um QI muito abaixo da temperatura ambiente.”

Jenkins, de 41 anos, que se identifica como o alto comissário do Conselho Tradicional Nativo Goringhaicona Khoi Khoin, classificou de racista a descrição que Khoisan fez dele. Disse que é sul-africano e foi empossado como líder nativo, mas nasceu no Zimbábue porque seus pais eram ativistas que viviam no exílio. Por sua vez, acusou Khoisan, ex-jornalista e ativista antiapartheid, de liderar “um grupo de chefes” que está criando confusão sobre a identidade das Primeiras Nações para ajudar o desenvolvedor.

Chefe Zenzile Khoisan, líder nativo, perto do canteiro de obras da sede africana da Amazon na Cidade do Cabo, África do Sul, 11 de agosto de 2021. (Joao Silva/The New York Times)
Chefe Zenzile Khoisan, líder nativo, perto do canteiro de obras da sede africana da Amazon na Cidade do Cabo, África do Sul, 11 de agosto de 2021. (Joao Silva/The New York Times)

Líderes e pesquisadores nativos geralmente concordam que, em algum lugar nas proximidades do empreendimento, localizado entre os rios Black e Liesbeek, guerreiros khoi lutaram contra um ataque do explorador português Francisco d’Almeida em 1510, a primeira resistência ao colonialismo na África do Sul. A primeira colonização de terra também foi nessa área, promovida pelo holandês Jan van Riebeeck no fim do século XVII.

Em 1939, a empresa pública de transporte ferroviário concluiu a construção de um clube esportivo destinado só a brancos para seus trabalhadores no que hoje é o local do empreendimento. Nos últimos anos, tem sido um campo de golfe privado.

O Liesbeek Leisure Property Trust, proprietário do imóvel, anunciou no fim de 2015 que planejava construir um empreendimento lá. Jenkins mencionou a preocupação pela primeira vez em uma reunião pública com o desenvolvedor no início de 2018. “É o silenciamento de uma história muito poderosa que nos remete ao pecado original”, afirmou Jenkins sobre o projeto em uma terra onde os colonizadores atacaram os nativos.

Jody Aufrichtig, um dos empreiteiros, garantiu ter procurado trabalhar com a população local desde o início do projeto. Como prova, mostrou um e-mail de Ron Martin, líder khoi e especialista em patrimônio, de agosto de 2016, no qual este agradecia a Aufrichtig por se envolver com pessoas das Primeiras Nações e se oferecia para fornecer serviços de consultoria por 22.700 rands (cerca de US$ 1.500).

Martin contou em uma entrevista que nunca fez o trabalho de consultoria e não recebeu nenhum pagamento de Aufrichtig. “Qualquer inferência de que nós, como um coletivo ou khoi como um todo, vendemos nossa alma para um desenvolvimento por oito peças de prata é ridícula. Estamos nisso por uma coisa muito, muito maior. É para conservar a narrativa patrimonial do povo khoi e san.”

A Amazon, que tem três centros de processamento de dados na região da Cidade do Cabo, tem se mostrado visivelmente tranquila com a controvérsia, recusando-se a comentar a cobertura deste ou de outros meios de comunicação.

O departamento de gestão ambiental da Cidade do Cabo recorreu da aprovação dada por outro órgão, alertando que o desenvolvimento traria “impactos e riscos ambientais negativos significativos, particularmente inundações”. E a agência provincial, Patrimônio do Cabo Ocidental, argumentou que o projeto comprometeria o valor do local como um lugar sagrado para os nativos.

À medida que o debate se arrasta, o desenvolvedor alertou as autoridades da cidade “que pode perder a Amazon como parceira interessada”, segundo Marian Nieuwoudt, membro do Conselho da Cidade do Cabo. (O representante do desenvolvedor negou isso em uma entrevista.)

Em última análise, o ministro provincial de Assuntos Ambientais aprovou o projeto em fevereiro passado, argumentando que os desenvolvedores, que alteraram o projeto mais de 250 vezes, fizeram o suficiente para mitigar o risco de inundação e aumentar o valor patrimonial do local. Também elogiou o plano de converter o clube de golfe privado em um parque público. O então prefeito da Cidade do Cabo assinou o projeto em abril.

James Vos, membro do Conselho Municipal que supervisiona o desenvolvimento econômico, declarou sobre a Amazon: “Ter sua sede aqui na Cidade do Cabo significa muito.”

Mas chegar a esse ponto afetou a longa luta pelo reconhecimento dos nativos, de acordo com Cecil le Fleur, presidente do Conselho Nacional Khoi e San, que o governo formou há mais de 20 anos para representar os interesses desses grupos. Ele não assumiu uma posição sobre o desenvolvimento. “Não me sinto feliz quando vejo como nosso povo vai ficando cada vez mais dividido.”

c. 2022 The New York Times Company

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