Qual o tamanho da fome no Brasil? Entenda por que institutos divulgam números diferentes

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© Alexandre Battibugli/Veja SP

Por Fernanda Pinotti

Ao longo de 2022, estudos sobre o avanço da fome no Brasil trouxeram resultados divergentes sobre o número de pessoas em situação de insegurança alimentar.

A reportagem analisou as pesquisas divulgadas pelo centro de políticas sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV Social), pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) e pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) para entender a causa da diferença entre os relatórios.

Enquanto a agência da ONU aponta cerca de 15 milhões de brasileiros e brasileiras que passam fome, a Rede Penssan estima 33 milhões. Já de acordo com o FGV Social, seriam cerca de 77 milhões de pessoas com algum nível de insegurança alimentar no país.

O que é a fome?

Para entender porque os números mudam tanto, primeiro é preciso explicar os conceitos envolvidos nas pesquisas. De acordo com a FAO, a fome é considerada a sensação de dor física causada pela ausência de alimentação por pelo menos um dia.

As pesquisas, de forma geral, não medem o nível de fome de uma população, e sim o nível de insegurança alimentar. Este é um conceito mais complexo, e para existir a insegurança alimentar, não necessariamente precisa existir fome.

Quatro fatores estão associados a essa condição: a acessibilidade das famílias a alimento, ou seja, se a família tem direito para comprar comida ou não; a disponibilidade de alimentos nos supermercados e locais de venda; a continuidade da alimentação ao longo do tempo, se as pessoas têm acesso a alimentos o ano todo; e a relação nutricional dos alimentos consumidos, que devem fornecer a quantidade de calorias e nutrientes necessários.

É possível separar a insegurança alimentar em três categorias: leve, moderada e severa. A fase severa é aquela na qual o indivíduo passa fome, está sem alimento há um dia ou mais. Na fase moderada, ainda é possível adquirir comida, mas em quantidade ou qualidade reduzida, comprando menos e se alimentando de embutidos ou ultraprocessados por serem mais baratos.

A fase leve da insegurança alimentar considera a possibilidade futura da pessoa ter que tomar alguma dessas medidas, quando existe o receio de passar fome no futuro próximo.

A pesquisa divulgada pelo FGV Social com base em dados do instituto Gallup World Poll diz que, em 2021, a insegurança alimentar atingiu 36% da população brasileira. Cerca de 77 milhões de pessoas.

Os dados divulgados pela Penssan no 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil foram coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022 e mostraram mais de 33,1 milhões com insegurança alimentar grave. São 65,5 milhões com insegurança moderada ou severa, e 125,2 milhões de brasileiros com algum nível de insegurança alimentar.

Já a publicação da agência da ONU traz 15,4 milhões de pessoas com insegurança alimentar grave no Brasil, e 61,3 milhões com insegurança moderada ou grave. Os números são resultados da média entre 2019 e 2021, e a FAO não utiliza a categoria leve em suas classificações.

Diferentes metodologias levam a diferentes resultados

Em contato com a FAO, a agência explicou que essas divergências acontecem por conta dos diferentes meios utilizados para identificar a insegurança alimentar.

A FGV Social se baseou nos dados do instituto Gallup World Poll, que inclui em seu questionário a pergunta: “Houve nos últimos 12 meses momentos em que você não teve
dinheiro suficiente para comprar a comida que você ou sua família necessitava?”. Caso a resposta seja “sim”, se considera que a família daquele indivíduo está em situação de insegurança alimentar.

Já a rede Penssan e a FAO utilizam bases de cálculo diferentes. A Escala Brasileira de Medida Direta e Domiciliar da Insegurança Alimentar (Ebia) no caso da primeira, e a escala global de Experiência da Insegurança Alimentar (Fies, na sigla em inglês) no caso da segunda.

“É como se a escala da FAO tivesse uma linha de corte mais elevada”, explicou a agência.

A Ebia é a escala utilizada oficialmente pelo IBGE para classificar a insegurança alimentar no Brasil – os últimos dados divulgados pelo IBGE sobre isso são referentes a 2017 e 2018, e por isso não entraram na comparação.

A FAO reiterou que, para analisar a realidade brasileira, a Ebia é considerada a escala mais apropriada, mas não é interessante para a agência utilizá-la, pois a ONU analisa a insegurança alimentar em escala global.

“A FAO não considera a categoria de insegurança alimentar leve, pois em alguns continentes e regiões mais pobres um país inteiro poderia se encaixar nessa categoria.”

Tanto a Ebia como a escala Fies são medidas através de perguntas feitas aos entrevistados, que são classificados de acordo com o número de respostas que se encaixam na categoria de insegurança alimentar. No entanto, a Fies considera um grau de restrição de alimentos mais elevado para entrar na categoria do que a Ebia.

A volta do Brasil para o Mapa da Fome

Dentre as três pesquisas analisadas, há mais pontos de convergência do que de divergência. Todas elas mostram o aumento da fome e da insegurança alimentar no país, que voltou para o Mapa da Fome da ONU após os resultados do levantamento de 2021.

O Mapa da Fome é o sistema global de monitoramento da fome do Programa Mundial de Alimentos. Ele combina as principais métricas de diversas fontes de dados, como informações de segurança alimentar, clima, tamanho da população, conflitos, perigos, informações nutricionais e dados macroeconômicos para ajudar a avaliar, monitorar e prever a magnitude e gravidade da fome quase que em tempo real.

Em 2022, a ONU anunciou que o Brasil retornou ao Mapa da Fome, no relatório global da FAO. Segundo a organização, a prevalência da insegurança alimentar grave atingiu 15,4 milhões de brasileiros, ou seja, 7,3% da população, entre os anos de 2019 e 2021. Para considerar que um país superou o problema da fome este indicativo deve ficar abaixo dos 5%.

Todas as pesquisas também relacionam a insegurança alimentar à pobreza. “A renda, na maioria dos casos, está associada à insegurança alimentar. O acesso das famílias aos alimentos é um dos fatores mais importantes”, informou a FAO.

Por conta disso, a FAO apoia que os governos dos países invistam em medidas sociais. “O auxílio emergencial foi uma medida essencial no Brasil”, disse a agência.

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