Entenda por que a OMS alerta para a emergência de uma nova doença

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Foto: Reprodução

Por Lucas Rocha

Covid-19, gripe aviária, mpox, Ebola, chikungunya, Marburg. Esta é apenas uma parte das doenças – algumas novas, outras não tanto -, que o mundo precisou enfrentar desde a virada do século.

Não há um consenso entre epidemiologistas sobre as causas do aumento de doenças. No entanto, pesquisadores apontam que a forma como os humanos lidam com o meio ambiente e com os efeitos das mudanças climáticas é crucial para aumentar os riscos de contato entre humanos e agentes causadores de doenças, como vírus e bactérias, conhecidos tecnicamente pelo nome de “patógenos”.

No caso da Covid-19, por exemplo, estudos que buscam identificar a origem da infecção pelo SARS-CoV-2 em humanos apontam que o contato com animais vendidos em um mercado de Wuhan, na China, pode ter sido a causa inicial da pandemia. Outras linhas de pesquisa relacionam a emergência da doença a um “salto” do vírus que estaria presente em morcegos e teria ganhado a capacidade de infecção de pessoas.

Em 2022, quando era presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Nísia Trindade, atual ministra da Saúde, afirmou que a maior ocorrência de epidemias pode ser a marca deste início de século.

“Embora estejamos mais aptos a identificar essas emergências, não há dúvidas de que elas têm acontecido com mais frequência, devido a fatores sociais, com destaque para aglomerações urbanas e aumento de desigualdades, além do intenso fluxo de pessoas e de mercadorias, característico de uma economia globalizada”, disse Nísia.

No início da semana, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, fez um alerta sobre a  importância da preparação pelos países para novas emergências sanitárias.

“Permanece a ameaça do surgimento de outra variante que causa novos surtos de doenças e mortes. E a ameaça de outro patógeno emergente com potencial ainda mais mortal permanece. E as pandemias estão longe de ser a única ameaça que enfrentamos. Em um mundo de crises sobrepostas e convergentes, uma arquitetura eficaz para preparação e resposta a emergências de saúde deve abordar emergências de todos os tipos” – Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS

A fala do chefe da OMS aconteceu no contexto da 76ª Assembleia Mundial da Saúde, em referência ao lançamento de uma rede global para prevenir doenças. O assunto repercutiu em redes sociais com críticas de que o tom seria mais de alarmismo do que de precaução.

A reportagem consultou especialistas em saúde pública que acompanharam de perto o surgimento da Covid-19 e seus desdobramentos nos últimos três anos, para explicar em detalhes como os países podem se preparar a uma nova emergência sanitária global.

O médico infectologista Júlio Croda, da Fiocruz e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) explica que o desenvolvimento de planos de ação deve contemplar os possíveis protocolos para o caso de disseminação de um agravo novo ou reemergente.

“Quando a gente fala de preparação para novas emergências, significa que temos que ter planos de contingência a nível estadual, federal e, eventualmente, municipal, que claramente estejam orientando os serviços de saúde no sentido da vigilância desses agravos, além da notificação, do diagnóstico, do isolamento e eventual tratamento, e questões como expansão de novos leitos, de abertura de novos serviços, de ampliação de testagem.

Em termos de saúde pública, o sanitarista Gonzalo Vecina, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e ex-diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), destaca a importância da vigilância epidemiológica.

“É vigiar o meio ambiente: identificar se existem, fora de um padrão esperado, mortes no mundo animal, zoonoses em particular, e tentar entender essas mortes. Por exemplo: quando eu tenho uma selva e começa a morrer macacos ou qualquer tipo de animal nesse local, e isso é verificado por pessoas que circulam pelo local ou também por algum tipo de vigilância feita pelo estado através da saúde pública, da agricultura, do meio ambiente, é preciso identificar qual é a causa e o que está causando”, detalha.

Desafios de prever uma nova emergência

Existe a ameaça de uma nova Covid? Para responder a essa questão, é preciso entender como surge uma pandemia.

O contato inédito com microrganismos capazes de provocar a infecção do organismo humano costuma ser o primeiro passo para a emergência de uma nova doença. Vírus e outros agentes com potencial nocivo podem estar presentes em animais sem que afetem a vida humana.

No entanto, um fenômeno conhecido como “transbordamento”, ou “spillover” em inglês, descreve a capacidade de adaptação desse micróbio para migrar entre hospedeiros de diferentes espécies.

A forma como um “transbordamento” acontece é alvo de estudos pela comunidade científica global. Para que um vírus se adapte para ir de um hospedeiro animal a uma pessoa, por exemplo, são necessárias condições favoráveis, incluindo questões como comportamento humano e a quantidade viral relacionada à exposição do indivíduo.

Embora o mecanismo seja compreendido pela ciência, prever como e quando ele vai ocorrer é um grande desafio. As pandemias de gripe, por exemplo, acontecem quando uma nova cepa viral surge a partir de rearranjos no genoma do vírus, um fenômeno que não pode ser previsto nem mesmo com alta capacidade de vigilância.

“Geralmente, é mais comum a gente se preocupar com vírus por que eles têm uma infectividade maior, uma capacidade de se disseminar maior, pelo menos a experiência tem sido essa. Embora existam também microrganismos maiores como a bactéria da tuberculose, que se transmite por via aérea, como um outro tipo de bactéria, do cólera, que se transmite pela água”, explica Vecina.

Contudo, alguns fatores contribuem de maneira significativa para aumentar os riscos da exposição humana a agentes causadores de doenças.

Entre eles, estão o avanço humano sobre áreas e reservas naturais que abrigam espécies silvestres, serviços de higiene precários que afetam metade das unidades de saúde do mundo, alimentação à base de animais silvestres, falta de higienização no preparo de alimentos, além da escassez na oferta de saneamento básico e os efeitos das mudanças climáticas.

Em convergência, os problemas citados anteriormente facilitam o contato de indivíduos com microrganismos com potencial nocivo. A infecção pelo HIV, pelo Ebola e pelo vírus influenza H1N1, responsável pela pandemia de gripe de 2009, são alguns dos exemplos de “transbordamento” associados a casos e mortes em humanos no mundo.

“Ameaças sempre vão existir. Tivemos múltiplas emergências nos últimos anos. O H1N1, em 2009, o novo vírus da influenza que causou um impacto enorme em termos de casos e de hospitalização. O vírus da Zika, com microcefalia nos bebês. Tivemos recentemente, em outros países, o SARS-CoV-1, o MERS, que são outros coronavírus que foram associados a emergências locais e tivemos o SARS-CoV-2”, afirma Croda.

O caso da gripe aviária

No entanto, nem todos patógenos contam com a capacidade de desencadear uma pandemia – para a nossa sorte. O vírus influenza H5N1, que ganhou repercussão nos últimos meses devido aos casos de gripe aviária registrados em humanos, é exemplo de microrganismo que não se adaptou bem à transmissão de um humano para outro.

Entre 2003 e 2023, foram registrados mais de 800 casos e mais de 450 mortes por influenza H5N1 em mais de 20 países, de acordo com a OMS. Segundo a OMS, quase todos os casos em humanos foram associados a contato próximo com aves vivas ou mortas infectadas ou ambientes contaminados. Além disso, o vírus não infecta pessoas com facilidade e a transmissão de pessoa para pessoa parece ser incomum.

No entanto, a OMS pontua que mudanças no vírus, relacionadas ao aumento da capacidade de infecção em humanos “mantendo sua capacidade de causar doenças graves” pode levar a “consequências para a saúde pública muito graves”.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA), a temporada epidêmica da Influenza Aviária de Altamente Patogenicidade (IAAP) segue com surtos em aves de granja, aves selvagens e mamíferos, principalmente nas regiões da Europa, América e Ásia.

No período epidêmico atual, o subtipo A (H5N1) é o predominante e têm provocado uma taxa alarmante de aves silvestres mortas e um número crescente de casos em mamíferos, tanto terrestres (incluindo animais de estimação) como aquáticos, causando morbidade e mortalidade, o que aumenta a preocupação sobre a ameaça que representa para a saúde dos animais domésticos e silvestres, para a biodiversidade e, potencialmente, para a saúde pública.

“O surgimento de um novo vírus ou de um agravo que se torna importante é um risco de emergência de saúde pública. Por exemplo, temos uma emergência de saúde pública no estado de Roraima por conta principalmente do vírus sincicial respiratório em crianças, que impactou os serviços de saúde infantil. Já houve envio de oxigênio para uma melhor preparação, expansão de novos leitos”, pontua Croda.

“Então, esse planejamento tem que ser constante por que se torna cada vez mais constante uma nova ameaça de saúde pública principalmente com essa interação homem-meio ambiente e o aumento da chance de termos vírus que podem reemergir, com transmissão humano a humano e, portanto, com potencial pandêmico”, completa o infectolgista.

Os países estão “fazendo a lição de casa”?

Não é a primeira vez que a OMS toca na tecla de reforço da vigilância genômica.

A nova iniciativa, Rede Internacional de Vigilância de Patógenos (IPSN, em inglês) tem como objetivo disponibilizar uma plataforma para conectar países e regiões e ampliar os sistemas de coleta e análise de amostras. Analisar o material genético de vírus, bactérias, fungos e outros agentes infecciosos permite compreender o nível de infecciosidade, sua transmissibilidade e capacidade de provocar danos ao organismo.

A ideia é que haja uma integração mais ampla entre dados produzidos por institutos e centros de pesquisa em todo o mundo, com o objetivo de identificar e rastrear doenças emergentes ou reemergentes em tempo hábil, facilitando a tomada de decisão por autoridades de saúde e gestores. Além de agilizar a resposta a surtos, com a possibilidade de desenvolvimento em prazo mais curto de tratamento e possíveis vacinas.

“Em relação à Covid-19, pegou o mundo muito de surpresa. O que tivemos que aprender é exatamente isso: não podemos demorar para tomar as medidas. O que já foi feito agora com a gripe aviária, tanto pela Organização Mundial da Saúde, quanto aqui no Brasil onde já se anunciou uma emergência zoosanitária”, afirma a médica infectologista Rosana Richtmann, do Hospital Emílio Ribas, de São Paulo.

Anteriormente ao lançamento da nova rede, ainda em 2022, a OMS lançou um programa para impulsionar a vigilância genômica, considerada um ponto crucial em saúde pública e global. Historicamente, poucos países têm feito esse tipo de atividade de forma regular, considerando os altos custos envolvidos com a tecnologia, de acordo com a OMS.

À época, a OMS revelou que os investimentos realizados durante a pandemia permitiram um aumento na vigilância que chegou a 68% no início de 2022. Houve também uma ampliação no compartilhamento público de dados de sequenciamento. Em janeiro de 2022, 43% mais países publicaram seus dados em comparação com um ano antes.

No entanto, a OMS pontua que o avanço para a fase residual da pandemia tem sido associado ao corte de orçamentos para a vigilância, mesmo em países desenvolvidos. Além disso, o compartilhamento de dados ainda é insuficiente para a formação de uma arquitetura robusta de vigilância global.

“A genômica está no centro da preparação e resposta efetivas a epidemias e pandemias, bem como parte da vigilância contínua de uma vasta gama de doenças, desde doenças transmitidas por alimentos e gripe até tuberculose e HIV. Seu uso no monitoramento da disseminação da resistência aos medicamentos do HIV, por exemplo, levou a regimes antirretrovirais que salvaram inúmeras vidas”, afirma a OMS, em comunicado.

Com o objetivo de destacar a importância da preparação e do investimento em pesquisa, a OMS criou em 2018 um conceito chamado “doença X”. De acordo com a OMS, a “doença X” representa o conhecimento de que uma grave epidemia internacional pode ser causada por um patógeno atualmente desconhecido.

“A ‘doença X’ é a próxima epidemia, a próxima doença que vai aparecer. Nós não temos dúvida de que vai aparecer. Falar sobre algo que ainda é abstrato, mas que vai se transformar em uma realidade e vai ser uma emergência”, explica o sanitarista Gonzalo Vecina.

Pressão ecológica

As discussões sobre mudanças climáticas costumam apresentar dados alarmantes para o futuro do planeta, como a elevação da temperatura média global, alterações nos regimes de chuva e seca e aumento da ocorrência de fenômenos extremos, como furacões, ciclones e inundações.

Contudo, os efeitos da ação humana sobre a natureza já podem ser sentidos no momento presente. Entre os impactos para a saúde, estão fatores como o adoecimento e morte por agravos associados a eventos como ondas de calor, tempestades e enchentes, além do aumento de zoonoses, doenças transmitidas por vetores e questões de saúde mental.

A OMS afirma que a mudança climática também traz impactos negativos sobre os determinantes sociais da saúde, como meios de subsistência, igualdade e acesso a cuidados de saúde e estruturas de apoio social.

A emergência de novos microrganismos capazes de provocar doenças é outro ponto preocupante da relação conturbada de humanos com o meio ambiente. Em uma entrevista à imprensa em junho de 2022 sobre a mpox, doença conhecida anteriormente como varíola dos macacos, o diretor-executivo do Programa de Emergências da OMS, Mike Ryan, destacou o cenário de fragilidade ecológica.

“Estamos lidando com muita fragilidade ecológica. Estamos lidando com a interface animal-humano bastante instável. E o número de vezes que essas doenças se espalham para os humanos está aumentando. Essa capacidade de amplificar essa doença e disseminá-la dentro de nossas comunidades está aumentando”, afirmou.

“Portanto, os fatores de emergência e amplificação de doenças aumentaram. E, assim, não é apenas a monkeypox. São outras doenças. Estas são geralmente doenças de pequenos mamíferos. Vimos algo semelhante com a gripe aviária”, completou Ryan.

Saúde mental

Especialistas em saúde mental afirmam que o medo do contágio e a sensação de insegurança diante de uma nova doença podem provocar impactos a longo prazo.

“A ansiedade e o medo da contaminação podem afetar especialmente as pessoas mais vulneráveis, com predisposição, que têm experiências de vida mais impactantes, com algumas vivências mais difíceis. Essas podem ter um nível de ansiedade, de medo ainda maior e desencadear outros transtornos inclusive, como o transtorno de ansiedade generalizada, síndrome do pânico, alguns tipos de fobia e depressão”, afirma Marilene Kehdi, psicóloga e especialista em atendimento clínico.

O psicólogo Maycon Rodrigo Torres, membro do Laboratório de Psicanálise e Laço Social e professor de psicologia Faculdade Maria Thereza (Famath), explica que a ansiedade diante da emergência de uma nova doença, por exemplo, é algo comum.

“Toda experiência desconhecida tende a gerar um aumento de ansiedade. Somado a isso, contextos de crise econômica e política, que geram também maior instabilidade emocional, tendem a agravar ainda mais o quadro de ansiedade que essas doenças podem ocasionar”, afirma.

No entanto, a ansiedade passa a representar um problema quando afeta um indivíduo de maneira intensa.

“É importante ficar atento ao nível de preocupação que essa ideia pode ter. Por exemplo, quando a pessoa passa a gastar um tempo muito grande em relação a esse medo de contrair a doença ou com as medidas de prevenção, quando isso passa a ser uma prioridade ou a prejudicar outras áreas da vida, é um sinal de alerta”, pontua Torres.

De acordo com o especialista, distúrbios como o transtorno obsessivo compulsivo (chamado de TOC) e o transtorno de ansiedade generalizada (TAG) têm como características semelhantes ideias prevalentes em relação à preocupação.

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