‘Eu queria falar e não tinha quem me ouvisse’, diz mãe que perdeu filha de 19 anos por suicídio

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Terezinha Maximo fundou a Associação Brasileira dos Sobreviventes Enlutados por Suicídio (Abrases) após a morte da filha — Foto: Fábio Tito/g1

Ao receber a notícia do suicídio da filha de 19 anos, a corretora de seguros Terezinha Maximo passou dias anestesiada, pensando:

“Como é que a gente vai viver? Como a gente vai conseguir sobreviver sem a Marina? A Marina era o nosso sol, sabe?”.

Terezinha diz que passou inclusive a compreender andarilhos que vagam sem rumo. Era março de 2017.

Nove anos antes, Lucinaura Diógenes enfrentou a mesma tragédia. A filha caçula, Beatriz, de 13 anos, havia tirado a própria vida.

“Para a gente aquilo foi desesperador, porque a gente não esperava que fosse perder Bia tão cedo e daquela forma”.

Terezinha, de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, e Lucinaura, de Fortaleza, ainda enfrentaram a solidão de querer falar e não ter quem as quisesse ouvir, além da culpa – um sentimento comum a enlutados por suicídio.

Para quem achou que não fosse conseguir nem voltar para casa, sete anos se passaram desde a morte de Marina. Para Lucinaura, são 15 anos de luto. Em entrevista ao portal g1, as mães contaram a forma que encontraram para viver – e não apenas sobreviver.

Se você ou alguém que conhece estiver precisando de ajuda, procure o Centro de Valorização da Vida (CVV) pelo número 188. O atendimento é gratuito e funciona 24 horas.

Terezinha Maximo segura o retrato em que aparece Marina, Joseval (pai) e ela. A jovem cometeu suicídio aos 19 anos, em 2017 — Foto: Fábio Tito/g1
Terezinha Maximo segura o retrato em que aparece Marina, Joseval (pai) e ela. A jovem cometeu suicídio aos 19 anos, em 2017 — Foto: Fábio Tito/g1

Mudanças de comportamento e pedido de ajuda

Terezinha se surpreendeu quando Marina decidiu doar toda a sua coleção de livros da saga “Crepúsculo”, da qual era fã. O mesmo aconteceu com o violão – depois de se dedicar a aprender a tocar o instrumento, resolveu colocá-lo à venda.

“Ela gostava muito de uma coisa, e de repente desgostava. Não queria nem que a gente falasse mais no assunto”, contou a Terezinha.

Foi só quando Marina tinha por volta de 12 anos de idade, que a mãe e o pai passaram a notar algumas diferenças no comportamento da filha. Até então, não havia nada que chamasse a atenção na jovem que passava as férias na casa dos avós em Minas Gerais e compartilhava muitos dos interesses do irmão mais velho: videogame, “Dragon Ball”, mitologia e jogos online como “Age of Empires” e “Ragnarok”.

“[Marina] Tinha esses altos e baixos, mas a gente achava que era da adolescência”, conta Terezinha. A menina também tinha episódios de ansiedade, durante os quais o coração acelerava. Mas, segundo a mãe, a situação estava relativamente estável. Até que Marina chegou ao ensino médio.

“Complicou mesmo quando ela tinha 16 anos. Ela tinha extremos, de um dia acordar, abrir os braços e me dar um abraço, e, no dia seguinte, não queria sair do quarto, porque não queria ver ninguém.”

Nessa fase, chegaram também as provas preparatórias para o vestibular, o ensino técnico e exames de proficiência em inglês. Quando não alcançava um objetivo, a jovem ficava extremamente abalada.

“E eu falava para ela: ‘Marina, você não precisa ser a melhor, você não precisa disso, minha filha’. Mas ela queria, ela exigia de si mesma.”

Ao longo dos anos seguintes, a família buscou ajuda médica: cardiologista (por causa dos batimentos cardíacos acelerados) e ginecologista (em razão de uma possível TPM). Terezinha conta que não cogitava uma questão de saúde mental.

“Para mim, não era depressão, porque eu não conhecia [a apresentação da doença daquela forma]. Por ignorância, a depressão que eu conhecia era [no caso] de a pessoa ficar triste”, lembra.

Anos antes, o irmão mais velho de Marina havia tido depressão e ficava isolado em seu quarto. Já a jovem era muito sociável e estava sempre rodeada de amigos. Até que um dia, com 18 anos, a filha verbalizou para a mãe: “Estou precisando de ajuda”.

‘Desventuras em série’

Marina marcou consulta com um clínico geral, que a encaminhou a um psiquiatra. Veio o diagnóstico: depressão, fobia social e ansiedade.

“Como assim? Ela estava indo para a faculdade, saindo com os amigos, planejando viajar… Então, para mim, não era isso. Enfim, ela começou a tomar medicação”, disse Terezinha.

Poucas semanas após o início do tratamento, o psiquiatra sofreu um acidente e não pôde seguir com o retorno das consultas. “Quando isso aconteceu, Marina entrou em desespero. ‘Como é que eu vou fazer? Eu não posso ficar sem remédio’”, teria questionado a jovem.

Terezinha afirma que esse episódio “bagunçou tudo”. Paralelamente, Marina estava lidando com o fim de um relacionamento e uma resposta negativa em um processo seletivo de estágio. Ela dizia à mãe que estava vivendo “desventuras em série”, em referência a série de livros infanto-juvenis conhecidas pelo humor sarcástico.

O quadro clínico agravou-se vertiginosamente. “Ela já não conseguia mais comer, não dormia, começou a se cortar, tinha crises. A gente levava ao pronto-socorro, chegava lá, os médicos já falavam outra coisa. Aí, agendavam um outro psiquiatra em outro lugar”, diz Terezinha.

Em três meses, Marina passou por oito psiquiatras. Com o consentimento da jovem, a família tentou realizar uma internação, que durou dois dias, porque Marina pediu para voltar para casa.

Ela começou a afirmar que não queria mais viver, e os pais, seguindo recomendação médica, tiraram do alcance da jovem qualquer objeto com o qual ela pudesse se machucar. “E foi feito tudo isso em casa. Ela era vigiada o tempo todo”, disse Terezinha.

Em casa, Marina recebia visitas frequentes dos amigos, que faziam gestos de cuidado: uma amiga levava pudim, outro, o jogo de cartas Uno, para que pudessem jogar juntos. Com o tempo, ela começou a dar sinais de melhora. Falava sobre voltar à faculdade de filosofia, da qual estava afastada, e até começou a fazer planos para o carnaval seguinte.

“Eu falava: ‘Graças a Deus, ela está melhorando, a terapia está surtindo efeito, tudo está dando certo’. Aí, aconteceu”, lembra Terezinha. Era março de 2017.

‘Começaram a me evitar’

“Como é que a gente vai viver? Como a gente vai conseguir sobreviver sem a Marina? A Marina era o nosso sol, sabe? Nos primeiros dias, a gente ficou meio que anestesiado”, conta Terezinha.

Ela relata que, quando a ficha caiu, decidiu se dedicar intensamente ao trabalho, para manter a mente ocupada. Terezinha e o marido, Josivaldo, são corretores de seguros e trabalham em um escritório na própria residência, na parte da frente do imóvel. Por causa disso, o local tem grande rotatividade de pessoas.

“Eu tinha necessidade de falar e percebia que a minha fala incomodava as pessoas. E começaram a me evitar, a não mandar nem mais um bom-dia no WhatsApp.”

Algumas pessoas chegavam a comentar sobre a morte de parentes, como a mãe ou um irmão, mas Terezinha sentia que as situações não eram similares. Ela se lembrou, então, de uma cliente que tinha perdido um filho em um acidente de carro. A circunstância era diferente, mas a mãe de Marina via alguma proximidade entre os eventos.

Ao perguntar à cliente como foi seguir em frente, ouviu que ela passou a frequentar grupos de oração e fez um grande painel com fotos do filho.

“Aí, pensei: ‘Lascou, ferrou’, porque eu não sou religiosa e eu não consigo ver fotos da Marina’. Mas aquela palavra ‘grupo’ ficou [na cabeça]”, conta Terezinha.

‘Si us plau, no m’oblidis’

“Eu queria falar e não tinha quem me ouvir. Comecei a escrever. Vi que a escrita me dava voz”, diz ela.

Como um diário, passou a registrar como estavam sendo seus dias após a morte de Marina. Soube, então, de um concurso literário do Instituto Vita Alere, que se dedica ao trabalho de prevenção e posvenção ao suicídio, e enviou um texto intitulado “O maior amor do mundo”, no qual dizia que poderia escrever sobre a maior dor do mundo, mas preferia falar do amor de uma mãe por um filho. O material foi selecionado para ser impresso em um livro.

Terezinha decidiu, então, criar um blog para compartilhar as experiências similares, mas ainda não sabia que nome dar ao site.

Um dia, ao digitar o nome de uma amiga, chamada Mariana, para enviar uma mensagem, o celular sugeriu o contato de Marina, e lá estava a frase do status, em catalão: “si us plau, no m’oblidis”.

A jovem gostava de estudar outros idiomas – já tinha se dedicado, por exemplo, ao francês. Mas Terezinha, até então, não tinha tido a curiosidade de decifrar o significado daquelas palavras. Daquela vez, colocou no Google Tradutor e descobriu: “por favor, não me esqueça”. E assim o blog ganhava um nome.

Instituto Bia Dote

Em setembro de 2017, com seis meses de luto, Terezinha foi a uma conferência do Instituto Vita Alere, e lá conheceu a história de Lucinaura Diógenes.

“A morte de Bia, para gente, foi uma surpresa muito grande. Foi em 2008. Até então, não se falava em suicídio, não se falava em setembro amarelo, em prevenção, em posvenção. E, na minha casa, também se falava sobre isso, não se falava sobre morte, porque estava tudo muito bem, estava tudo perfeito”, disse Lucinaura ao portal g1.

Diferentemente de Marina, que tratava um quadro grave de depressão e verbalizava pensamentos de morte, Beatriz não havia externalizado os sinais mais tradicionais de quem tem comportamento suicida.

“Não era uma adolescente que fazia automutilação ou que era triste ou se isolava. Era uma pessoa que, para gente, seria a última que faria alguma coisa contra a própria vida. Porque dava a impressão de que ela era uma pessoa de bem com a vida”, conta a mãe.

Beatriz Dote, filha de Lucinaura Diógenes, de Fortaleza, morreu aos 13 anos, por suicídio, em 2008. — Foto: Arquivo pessoal
Beatriz Dote, filha de Lucinaura Diógenes, de Fortaleza, morreu aos 13 anos, por suicídio, em 2008. — Foto: Arquivo pessoal

A exemplo de Terezinha, Lucinaura não encontrava quem a quisesse ouvir e encontrou algum consolo na escrita. “Logo no começo do meu luto, escrevi mais de 30 cartas para a Bia.”

Cinco anos depois da morte da Beatriz, em 2013, Lucinaura criou o Instituto Bia Dote, projeto que trabalha com saúde mental, prevenção e posvenção (apoio nos processos de luto) ao suicídio.

“A gente, já até pelo nosso próprio processo de luto, fazia algumas ações sociais. Eu, meu marido e minha filha pensamos assim: ‘Tem que fazer alguma coisa para manter a memória de Bia, para honrar a vida dela, para honrar a morte dela’. Não tem coisa mais próxima do falar sobre prevenção do suicídio.”

No instituto, a família também oferece atendimento gratuito com psicólogos. Uma das profissionais que atende no local é a própria Lucinaura. Geóloga, ela decidiu cursar psicologia após o episódio com sua filha, e, hoje, concilia as duas carreiras.

Ao conhecer a história de Lucinaura, Terezinha tinha acabado de criar o blog. O encontro para ela representou uma “mudança de chave”, como Terezinha define. Ela enxergou um caminho para ressignificar seu luto.

Alguns anos depois, em 2022, Terezinha fundou a Associação Brasileira dos Sobreviventes Enlutados por Suicídio (Abrases).

“Eu não sou adepta a acreditar que a Marina morreu por algum propósito. Ou que tenho um propósito. Não acredito nisso. Acho que foi uma conjuntura de coisas que aconteceram, e a forma que encontrei de conseguir viver é fazer esse trabalho, sabe? Contar a minha história. Quando eu falava do meu luto, quando eu escrevia no blog, as pessoas liam e falavam: ‘Poxa vida, essa mulher está falando a mesma coisa que eu estou sentindo’.”

Julgamentos e culpa

Além de não encontrar recepção e acolhimento para que as pessoas do entorno escutassem o que estavam passando, Terezinha e Lucinaura enfrentaram julgamentos após a morte de suas filhas.

“’Você não viu sinais? Não percebeu? Ela não disse nada? Por que ela fez isso? Você não amou suficiente’ – tudo isso a gente escuta”, diz Terezinha.

Já Lucinaura lembra que o suicídio da filha foi um escândalo na cidade. Uma adolescente de 13 anos, aluna de um colégio particular de classe média alta de Fortaleza, que tirou a vida. Cada pessoa criava sua teoria, lembra a mãe da jovem.

“Ninguém precisa te culpar, porque você já se sente culpado. Ninguém precisa julgar, porque você já está ali querendo encontrar um motivo. Onde foi que você foi negligente? Onde foi que você falhou?”

Terezinha ainda destaca o fato de o familiar enlutado pelo suicídio escutar os questionamentos em um momento que está extremamente fragilizado.

“Acho que se romantiza muito a maternidade com essa questão de que a mãe sente, a mãe sabe. Se eu soubesse, a Marina estaria aqui.”

Grupos de apoio e escuta

Além das associações criadas pelas duas, o espaço que encontraram e que foi fundamental para elaborarem o luto foram os grupos de apoio com outros familiares que também enfrentaram suicídios nas famílias.

“A gente consegue falar o nome, a gente consegue contar histórias, consegue lembrar. Sempre falo a todas as pessoas que entram no grupo: ‘A Marina não se resume à morte dela. Ela foi muito mais que isso’. Nunca tive vergonha de falar, porque ela nunca me envergonhou em vida. E não é pela morte que ela vai me envergonhar”, afirma Terezinha.

Ela conta que, desde a criação do grupo de apoio, é procurada praticamente todas as semanas não só por quem teve um suicídio na família, mas por quem pensa em se matar. A escuta e orientação é fundamental para lidar com essas pessoas.

“O grupo de apoio às famílias sobreviventes foi uma forma de trabalhar também o nosso luto e acolher pessoas. Então, é um local de pertencimento, de ressignificação, de compartilhar o seu sofrimento. E é um local seguro”, diz Lucinaura.

Sobre(viver)

A cearense avalia que, quase 16 anos após a morte da filha, mudou seu sentimento em relação ao episódio. A escrita continua servindo de conforto.

“Hoje, não me sinto culpada. Não sou uma pessoa infeliz. Sou uma pessoa que sente muita saudade, que sente muita falta, mas também me alegro com o sucesso da minha [outra] filha [mais velha que Beatriz]. Me alegro com coisas que faço, com coisas que vejo. E eu escrevo cartas para Bia.”

Para Lucinaura, “a única forma de você reverter a presença de alguém a ressignificar e trazer as memórias e trazer as histórias e contar quem é essa pessoa, como ela continua na sua vida”. “Tento ver muitas coisas com os olhos de Bia. Acho que a gente aprende muito com os filhos. Eu, lógico, ensinei como mãe, mas aprendi muito com ela.”

Já Terezinha está perto de completar sete anos de luto. “Quando olho para trás, penso: ‘Nossa, como eu consegui chegar até aqui? Quanto eu caminhei”, afirma.

“É possível não só sobreviver, como viver um dia de cada vez. A gente consegue reconstruir a vida aos poucos. A gente consegue levar [aos grupos de apoio] tudo o que foi aprendido nesse período. Consigo levar às pessoas um pouco de esperança.”

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