Samuel Pessôa: “Guedes entrega situação fiscal melhor do que recebeu”

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© Gabriela Biló/Estadão - 02/10/2020. Ministro da Economia, Paulo Guedes.

Por Fábio Matos

O nome escolhido pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para comandar a economia a partir de 1º de janeiro de 2023 receberá uma situação fiscal melhor do que a encontrada pelo atual ministro Paulo Guedes (foto) ao assumir o cargo, em 2019. A avaliação é do economista Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), que concedeu entrevista ao site Metrópoles.

Para Pessôa, apesar de o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) merecer críticas em diversas áreas, é necessário reconhecer o legado deixado por Guedes na economia. Em 2021, de acordo com dados do Banco Central (BC) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil registrou um superávit de 0,75% do Produto Interno Bruto (PIB), revertendo uma tendência de déficit que vinha desde o governo de Dilma Rousseff (PT). Para 2022, a expectativa é de novo superávit.

Neste ano, o gasto da União será menor em 0,5 ponto percentual do PIB do que em 2018 – já considerando a cota “fura-teto”. Será a primeira vez desde a redemocratização que um presidente entregará ao sucessor um gasto inferior àquele recebido do governo anterior.

“Não tenho a menor simpatia pelo governo Bolsonaro nem por ele como figura humana. Mas nós temos que ter o mínimo de capacidade de análise. A herança não é maldita. A situação fiscal hoje é melhor do que há quatro anos”, afirma Pessôa.

Na entrevista, o economista critica o andamento do debate sobre a abertura de espaço no Orçamento de 2023 para aumentar gastos sociais, como o Auxílio Brasil de R$ 600. “Não há uma autorização da sociedade para perenizar os R$ 600 do Auxílio. Essa autorização só existiria se, conjuntamente com o programa, viesse a fonte de financiamento, o que a campanha eleitoral não discutiu”, diz.

De acordo com o doutor em economia pela Universidade de São Paulo (USP), “existe uma demanda por gastos”, mas não se discute, por exemplo, o eventual aumento da carga tributária, em uma situação em que “o Estado brasileiro é estruturalmente deficitário”. “É como um bêbado que está meio alcoolizado e vai à reunião do AA [Alcoólicos Anônimos], e o pessoal reconhece o problema dele e diz que ele tem que beber mais. Não faz o menor sentido”, critica.

Samuel Pessôa
Economista Samuel Pessôa

Leia os principais trechos da entrevista de Samuel Pessôa:

Em artigo recente, o senhor afirma que o ministro Paulo Guedes não deixará uma “herança maldita” na área fiscal, como costumam dizer os críticos do atual governo. Por que considera que o legado de Guedes é positivo?

Eu acho que o presidente Bolsonaro é uma pessoa muito complicada, para dizer o mínimo. Pessoalmente, não me agrada. Não dá para ter simpatia por alguém que elogia torturador. Reconheço que o governo Bolsonaro foi negativo em muitas áreas. Meio ambiente, relações internacionais, saúde e educação são alguns exemplos do que não foi bem. Não tenho a menor simpatia pelo governo Bolsonaro nem por ele como figura humana. Mas nós temos que ter o mínimo de capacidade de análise. A herança não é maldita porque a situação fiscal hoje é melhor do que há quatro anos. Não é perfeita e não está resolvida. Há um buraco fiscal de R$ 200 bilhões ou R$ 250 bilhões. Há quatro anos, esse buraco era maior.

O que explica a melhora do quadro fiscal?

Os motivos que levaram a uma trajetória fiscal melhor foram a reforma da Previdência, o congelamento do valor real do salário mínimo, uma política salarial do servidor público mais equilibrada, avanços no governo digital e redução de pessoal. A soma de tudo isso gerou um ajuste fiscal estrutural, ainda que não suficiente. O Paulo Guedes passará para o seu sucessor uma situação fiscal melhor do que aquela que ele recebeu do antecessor.

O futuro governo quer um espaço de R$ 175 bilhões e R$ 200 bilhões para gastar fora do teto a partir de 2023. Qual é o tamanho da ameaça da PEC da Transição às contas públicas e como o senhor tem acompanhado esse debate?

Há dois aspectos muito estranhos nesse debate. O primeiro é que se produziu um consenso, não sei de onde, de que promessa de campanha tem que ser executada. As pessoas dizem que o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2023 é uma ficção. Por que é uma ficção? É uma ficção porque as promessas de campanha não estão lá. Para mim, o que é ficção são as promessas de campanha, e não o PLOA. O PLOA é um orçamento compatível com o dinheiro que o Estado tem. O segundo aspecto é que não me parece que, quando um político promete alguma coisa e é eleito, isso significa que ele contratou junto à sociedade aquele gasto. Todo mundo falou em dar R$ 200 a mais para o Auxílio Brasil. Ok, não tem nenhum problema. O problema é que ninguém discutiu aumentar a carga tributária, por exemplo. A minha interpretação é a de que não há uma autorização da sociedade para perenizar os R$ 600 do Auxílio. Essa autorização só existiria se, conjuntamente com o programa, viesse a fonte de financiamento, o que a campanha eleitoral não discutiu. Existe uma demanda por gastos e não existe uma demanda por aumento de carga tributária numa situação em que o Estado brasileiro é estruturalmente deficitário. É como um bêbado que está meio alcoolizado e vai à reunião do AA [Alcoólicos Anônimos], e o pessoal reconhece o problema dele e diz que ele tem que beber mais. Não faz o menor sentido.

Lula passou a campanha dizendo que faria uma revisão do teto de gastos. Nos últimos dias, voltou a dizer que o futuro governo terá responsabilidade fiscal. Dá para acreditar?

A minha interpretação é que o presidente Lula está adotando uma estratégia política frequentemente adotada pelo Partido Republicano nos Estados Unidos, com sinal trocado. Quando você tem um governo republicano, eles desoneram, saem cortando imposto. Criam um fato consumado: a redução de impostos. A dívida cresce muito, gera um déficit. Quando vem um governo do Partido Democrata, eles pegam uma dívida alta e não conseguem gastar, têm de fazer ajuste fiscal. O Lula deseja construir um fato consumado, que é conseguir dois pontos percentuais do PIB a mais de gastos durante quatro anos. Isso significa levar para o buraco fiscal alguma coisa entre R$ 400 bilhões e R$ 450 bilhões por ano. Vai gerar uma crise fiscal em algum momento. O Lula acha que, quando a crise fiscal vier e ele precisar pedir carga tributária para o Congresso Nacional, o Congresso vai dar a carga tributária para ele, como costuma acontecer nos Estados Unidos nessas situações. Mas o presidencialismo bipartidário americano é muito diferente do presidencialismo multipartidário brasileiro. A atribuição de responsabilidades por bagunça na macroeconomia, aqui no Brasil, é do Executivo. Quando dá bobagem, o presidente e o partido do presidente ficam mal. O conjunto dos deputados, sejam eles da base do governo ou não, não são vistos pela sociedade como responsáveis. Os legisladores chegam para o presidente e dizem: ‘o problema é seu, não meu’. Foi o que o Congresso fez com a Dilma, em 2015. Com o Lula vai acontecer a mesma coisa. Claro, ele é um político muito mais experimentado, e a crise fiscal não será tão grave quanto a da Dilma. Ele chegará até o fim do mandato, mas pode virar um “pato manco”.

Lula é um político experiente, um ex-presidente de dois mandatos. Sabendo dos riscos na área fiscal, por que ele escolheu essa estratégia que o senhor aponta?

A única interpretação que consigo ter é que ele está intelectualmente convencido de que déficit público não é problemático. É um convencimento ideológico de que ele pode produzir déficit por um bom tempo e depois tentar arrumar lá na frente. Está errado. Os gastos extrateto que nós tivemos nos últimos anos não geraram muitos problemas porque se deram no contexto de uma surpresa imensa produzida por uma crise muito peculiar de uma epidemia, que gerou uma circunstância tal que foi possível gastar mais sem muitos efeitos colaterais. O problema é que as circunstâncias estão mudando rapidamente. Estamos com juros altos, inflação alta e também muito próximos do pleno emprego. Aquela ociosidade imensa que perdurou por bastante tempo acabou, é passado. Voltamos a uma situação em que não temos muito tempo para arrumar as coisas. A realidade atual é mais parecida com a realidade de 2014 e 2015 do que com a realidade de 2017, 2018 e 2019.

O mercado tem reagido com muita preocupação às especulações em torno do nome do sucessor de Guedes. O ex-ministro da Educação Fernando Haddad (PT) é um dos cotados. O que o senhor pensa sobre a possível indicação do petista para o cargo?

Não tenho nada contra o Fernando Haddad. Ele tem muita experiência no setor público, foi prefeito, foi ministro. É um nome, para a questão fiscal, que até tranquiliza. De tudo o que eu conheço dele, o Fernando não é adepto de um keynesianismo exagerado que vigora em diversos departamentos de economia pelo Brasil. É um cara que tem uma visão mais conservadora do problema fiscal. Não acho que esse é o problema. O problema é a visão do Lula. A política fiscal e a política econômica em geral vão ser do presidente Lula, isso já ficou claro. O nome do ministro não me parece muito importante. O importante é a gente entender como ele pretende tapar o buraco fiscal de R$ 450 bilhões. Qual é o plano? Até agora, Lula só disse que foi muito responsável fiscalmente nos oito anos de governo… Foi responsável fiscalmente, mas herdou um ajuste fiscal já feito. O Fernando Henrique Cardoso entregou para ele um país numa situação em que havia um superávit primário estrutural que estabilizava a dívida pública. FHC deixou um legado ruim na parte patrimonial. Uma parte da dívida era dolarizada e isso gerava problemas. Mas, na parte de fluxos, Lula recebeu a coisa bem arrumada e só teve que manter. Agora, não. Ele vai receber um buraco fiscal de R$ 200 bilhões, apesar dos esforços e do trabalho do Paulo Guedes, e ele quer aumentar esse buraco para R$ 450 bilhões. Para eu ficar calmo, sem medo de comprar o Brasil, preciso saber qual é o plano do Lula para gerar estabilidade fiscal. E ele não falou nada sobre isso.

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