Sem autorização, médico opera coração de paciente em cirurgia para tratar endometriose
Renata tenta não se emocionar demais. Também evita atividades físicas. Se ultrapassar os cem batimentos cardíacos por minuto, pode passar mal e até morrer. São sequelas, segundo ela, de uma cirurgia realizada em seu coração, sem o seu consentimento, pelo ginecologista Ricardo Mendes Alves Pereira.
A Polícia Civil instaurou em abril um inquérito para investigar o caso. Peça assinada pela delegada Ana Lúcia de Souza, do 78º Distrito Policial (Jardins), reproduz a acusação de que a paciente “se submeteu a procedimento cirúrgico para correção de endometriose da região pélvica”. Sem anuência dela ou de qualquer familiar, contudo, Pereira teria feito também uma “cirurgia torácica na vítima, operando seu diafragma e pericárdio”.
Ela acabou, ainda conforme o documento, desenvolvendo uma “enfermidade incurável” que a faz, aos 34 anos, depender do uso contínuo de medicamentos e levar uma vida cheia de restrições, como não poder se exercitar nem engravidar.
O desejo de ser mãe de quatro filhos foi o que a levou em primeiro lugar ao consultório de Pereira, no Jardim Paulista, na zona oeste de São Paulo (SP), para uma consulta que custou R$ 1.500. Para reconstituir o caso, que está sob sigilo desde maio, o jornal Folha de S.Paulo procurou parentes de Renata –um nome fictício, já que a paciente prefere preservar sua identidade e não falar publicamente sobre a denúncia.
São três fontes de investigação: a Polícia Civil, a Comissão de Ética do Hospital Israelita Albert Einstein e o Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo).
Segundo a Secretaria de Segurança Pública, “detalhes serão preservados para garantir autonomia ao andamento dos trabalhos policiais”.
O Hospital Israelita Albert Einstein, onde a operação aconteceu, diz que “segue em contato com a paciente e sua família, oferecendo todo o acolhimento necessário”, e que “os fatos relatados acerca da conduta do médico estão sendo apurados nas instâncias competentes”. O Cremesp informa que abriu sindicância para averiguar a denúncia.
A Folha de S.Paulo procurou os advogados de defesa e acusação. Nenhum quis falar. Luiza Oliver, sócia do escritório Toron Advogados, confirmou que “defende os interesses da paciente”, mas “não pode dar maiores informações em razão do sigilo decretado dos autos”.
Defensor do médico, Daniel Gerstler afirma que, “como o caso está sob sigilo, por interesse da própria paciente, entendemos que estamos proibidos de fornecer qualquer informação ou detalhe sobre as acusações”. Adiciona: “Entendemos, inclusive, que a veiculação de informações sobre o caso na imprensa esbarra nessa vedação também”.
Renata e o marido decidiram engravidar no meio de 2022. Tentaram por meses, e nada. Procuraram então ajuda médica. Os exames indicaram endometriose, quando o endométrio, tecido que reveste o útero, cresce em outras partes do corpo.
A doença afeta uma em cada dez mulheres no mundo e pode provocar dores terríveis. Não era o caso de Renata, que não sentia cólicas fora do comum. Um sintoma, porém, era a infertilidade. Como queria ser mãe e não estava conseguindo, achou melhor operar.
Chegou até Pereira por recomendação de sua ginecologista. A cirurgia ficou marcada para 19 de outubro de 2023. Quatro meses antes, o casal congelou embriões, de olho numa possível fertilização in vitro mais adiante.
Mas o plano inicial era engravidar naturalmente, daí a cirurgia para remover focos de endometriose que pudessem atrapalhar. Os familiares de Renata dizem que o ginecologista previu até cinco horas no centro cirúrgico. O procedimento durou mais do que o dobro disso e foi feito sem um cirurgião especializado em cardiologia presente, eles afirmam.
Ela achou que operaria região do útero, ovário, trompas e intestino grosso (cólon). De acordo com a denúncia, Pereira ampliou o escopo da cirurgia para tratar uma endometriose que também teria atingido diafragma e pericárdio, uma membrana que envolve o coração. Tudo sem pedir permissão e sem nenhum caráter emergencial que justificasse a medida.
Um familiar de Renata mostrou à reportagem trocas de mensagem entre médico, paciente e parentes, além de uma conversa gravada entre Pereira e o marido dela —tudo anexado à peça de acusação. Questionado sobre a intervenção no pericárdio e no diafragma, áreas não mapeadas nos exames, o ginecologista afirma no áudio que talvez Renata fosse “esquentar um pouquinho, ficar mais estressada sabendo que ia mexer aqui em cima”.
Meses depois, a paciente recebeu diagnóstico de pericardite, processo inflamatório desencadeado na região. De uma mulher esportista e saudável, que gostava de futebol, tênis, trilhas e beach tennis, ela virou portadora de uma condição crônica.
Hoje faz no máximo alongamentos e usa um Apple Watch para controlar os batimentos cardíacos, que devem ficar abaixo de cem. Nem sempre é possível. Mesmo caminhar com a cachorra já a fez superar esse limite. Nas Olimpíadas de Paris, deixou de ver alguns jogos para não se estressar demais –em algumas partidas, a emoção rendeu 115, 120 batidas por minuto.
Renata também não pode mais engravidar. A medicação pesada que usa, corticoides inclusos, não permite.
Outros efeitos colaterais que relatou: insônia, queda brusca de cabelo e inchaço. Tentou diminuir a dose do corticoide, mas a dor voltou com tudo.
Para parentes, se ao menos a adversidade tivesse sido detectada antes, a pericardite poderia ser revertida. O médico, no entanto, teria por semanas garantido estar tudo bem, chegando a dizer que havia zero chances de ser esse o diagnóstico correto, inclusive liberando Renata a voltar à rotina normal. Exercícios físicos, por exemplo.
Ela, nesse meio tempo, se queixava de dores fortes, que depois descobriu serem sintomas clássicos de inflamação do pericárdio. Uma das crises ocorreu após jogar beach tennis na época do Réveillon, por acreditar que não lhe faria mal nenhum, já que o médico havia permitido, dizem parentes.
A reportagem da Folha teve acesso a um email enviado por Pereira à paciente em fevereiro, três meses e meio após operá-la. Ele escreve que a confiança entre médico-paciente, contra o desejo dele, “se perdeu”. Já no pós-operatório “ficou nítido sua insegurança e de sua família” com o procedimento que tratou da “lesão de endometriose que invadia o pericárdio”, afirma ali.
Diz ainda que, em várias oportunidades, foi “totalmente transparente” e explicou os motivos que o levaram a retirar a endometriose local. Afirma também que buscou “exaustivamente” compreender os “sintomas decorrentes da complicação surgida no pós-operatório”, e que assume “toda a responsabilidade pela decisão da cirurgia”.
Ele assina como diretor do Centro de Endometriose do Hospital da Mulher Santa Joana, uma das maternidades particulares mais tradicionais de São Paulo. Em seu site, o hospital destaca a biografia de Pereira, um “cirurgião ginecológico, com especialização pela Universidade de Barcelona”, que tem “larga experiência em endometriose” e é especializado em “cirurgia ginecológica minimamente invasiva (laparoscopia e cirurgia vaginal) e neuropelviologia (estudo das alterações que envolvem os nervos da pelve)”.
A família relata outra versão: que Pereira, em pelo menos uma ocasião, se irritou ao saber que Renata procurou outro médico em busca de uma segunda opinião para as dores que vinha sentindo.
Atualmente, Renata cuida da pericardite com outros médicos e pesquisa tratamentos fora do país, sem qualquer garantia de cura. Enquanto isso, ela e o marido veem quase todos os amigos tendo filhos. Não sabem se a vez deles chegará. Tudo começou porque ser mãe e pai era o que eles mais queriam.
Só casos de urgência permitem que cirurgião mude o combinado com paciente, dizem especialistas
A realização de procedimentos fora do previsto devem ser previamente analisados e ter o consentimento da paciente, segundo especialistas.
Reportagem da Folha mostrou que ginecologista que teria deixado sequelas cardíacas em uma mulher submetida a uma cirurgia de endometriose na região pélvica. A paciente afirma que não deu consentimento para que o procedimento fosse realizado em outras regiões. A defesa de Ricardo Mendes Alves Pereira firma que não vai se pronunciar devido ao sigilo da ação.
A queixa da paciente foi levada à Polícia Civil, que investiga o médico por ter feito procedimentos no diafragma e pericárdio sem consentimento e por, supostamente, ter deixado sequelas na paciente de 34 anos, que não quis se identificar.
A endometriose afeta uma em cada dez mulheres no mundo e é causado quando o endométrio, tecido que reveste o útero, cresce em outras partes do corpo. A doença causa dores intensas. A cirurgia acontece sob sedação e costuma envolver pequenos cortes cirúrgicos nas regiões afetadas.
No pré-operatório, são pedidos exames clínicos, de imagem e consulta ao histórico médico do paciente antes da assinatura do termo de consentimento. Já o pós-operatório costuma demandar repouso de duas semanas.
A paciente do inquérito passou pela cirurgia com o especialista em 19 de outubro de 2023 para tratar uma endometriose na região pélvica, em uma tentativa de engravidar. Meses depois, afirma ter sentido ainda mais dores.
Segundo o doutor e professor Maurício Simões Abrão, responsável pelo departamento de endometriose da USP (Universidade de São Paulo), o médico deve explorar todos os locais onde possam haver sinais da doença e que o especialista em endometriose tem autoridade para uma intervenção. Isso inclui áreas como o diafragma.
Apesar disso, Abrão afirma que o procedimento deve ser combinado antes. “Tudo depende da conversa no pré-operatório e no termo de consentimento que a paciente assinou”, explica.
Em 2016, o CFM (Conselho Federal de Medicina) recomendou que o termo deveria ser escrito de maneira legível, clara, com indicações de efeitos colaterais, justificativa para determinados procedimentos e um campo para a assinatura do paciente.
O especialista acrescenta que o comprometimento do pericárdio devido à endometriose é menos frequente, mas que o efeito sobre o diafragma não é incomum.
No caso do diafragma, a condição pode ser detectada previamente com a avaliação de sintomas como dores nos ombros durante a menstruação. Segundo ele, também é preciso ponderar se as sequelas do caso estão atreladas ao procedimento extra ou ao próprio processo inflamatório deixado pela doença.
Inicialmente, a mulher que acusa o ginecologista relata que seria operada na região do útero, ovário, trompas e intestino grosso. Até então, se queixava apenas de cólicas pontuais.
Pereira, porém, teria ampliado o escopo e operado uma endometriose no diafragma e pericárdio, membrana que envolve o coração. Segundo a investigação da Polícia Civil, a ação fora do combinado teria gerado uma pericardite, um processo inflamatório do pericárdio.
Segundo Washington Fonseca, advogado especialista em direito médico, o termo de consentimento deve trazer todas as indicações pré e pós-operatórias, além de todos os procedimentos que serão adotados. O documento deve ser assinado previamente.
“A exceção [para fugir do termo] é quando o paciente está em risco iminente risco de morte ou urgência”, diz. O desrespeito ao documento pode gerar um processo ético no conselho médico, uma vez que o termo tem valor jurídico para desencadear uma ação na Justiça, acrescenta.
Na opinião da advogada especialista em direito médico, ética e compliance na saúde Samantha Takahasi, o médico que descobre uma nova situação durante uma cirurgia sem urgência, deve considerar adiá-la ou ponderar se é o caso de coletar o consentimento de um familiar.
“Desde que exista uma justificativa, sempre mediante um juízo de ponderação entre risco versus benefício ao paciente”, diz.
Hoje, a paciente trata da pericardite com especialistas no exterior, mas sem garantia de cura. A defesa da paciente também não quis se pronunciar devido ao sigilo do processo, que segue em andamento.
O ginecologista investigado assina como diretor do Centro de Endometriose do Santa Joana, uma das maternidades particulares mais tradicionais de São Paulo.
O CFM (Conselho Regional de Medicina), responsável por fiscalizar a conduta dos médicos no país, não respondeu os questionamentos até o fechamento da reportagem.
O Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) informa ter aberto uma sindicância para averiguar o caso.
Em nota, o Hospital Albert Einstein, onde a operação aconteceu, afirma que “segue em contato com a paciente e sua família, oferecendo todo o acolhimento necessário” e que “os fatos relatados acerca da conduta do médico estão sendo apurados nas instâncias competentes.”