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Por Kevin Roose

Uma das perguntas mais frequentes feitas por quem duvida das criptomoedas é: o que você pode fazer com elas, além da especulação financeira e da prática de crimes?

É uma pergunta difícil de responder, em parte porque a maioria dos usos bem-sucedidos (e legais) de criptomoedas até agora foram em finanças ou áreas adjacentes. Existem muitas exchanges de criptomoedas, plataformas de negociação de tokens não fungíveis (NFTs) e videogames que envolvem a compra e a venda de tokens de criptomoedas. Mas, até agora, poucos projetos de criptomoedas tiveram o que eu chamaria de “utilidade normativa” – resolver problemas que existem para pessoas fora do mundo das criptomoedas, que não envolvem principalmente a compra ou a venda de ativos digitais, e que seriam impossíveis de solucionar com tecnologia normal, não criptografada.

A Helium, rede sem fio alimentada por criptomoeda, pode ser a promessa prática de serviços descentralizados. (Beatrice Sala/The New York Times)
A Helium, rede sem fio alimentada por criptomoeda, pode ser a promessa prática de serviços descentralizados. (Beatrice Sala/The New York Times)

Recentemente, porém, descobri um uso assim. Trata-se da Helium. Embora não seja o projeto de criptomoeda que mais chama a atenção – já que não envolve desenhos de macaco nem cópias da Constituição dos EUA –, testá-lo me ajudou a entender como as criptomoedas podem ser bastante úteis para resolver certos tipos de problemas.

Em um nível básico, a Helium é uma rede sem fio descentralizada para dispositivos de “Internet das Coisas”, alimentada por criptomoedas. A rede é composta por dispositivos chamados de pontos de acesso Helium, aparelhos com antenas que podem enviar pequenas quantidades de dados a longas distâncias usando frequências de rádio. Esses pontos de acesso, que custam cerca de US$ 500 cada e têm um alcance até 200 vezes maior do que o Wi-Fi convencional, compartilham a banda de seus proprietários com dispositivos conectados à Internet próximos – como parquímetros, sensores de qualidade do ar ou utensílios de cozinha inteligentes.

Qualquer um pode usar a rede Helium, embora a maioria de seus usuários até agora sejam empresas como a Lime (que usou o Helium para manter o controle de suas scooters) e a empresa de ratoeiras Victor (que o usa em sua nova linha de armadilhas conectadas à internet). Mais de 500 mil pontos de acesso da Helium estão em uso em todo o mundo, com milhares sendo adicionados à rede todo dia.

É aqui que entra a parte criptográfica: além de transmitir dados, os pontos de acesso da Helium recompensam os proprietários por participar da rede criando unidades de uma criptomoeda chamada $HNT. Esses tokens podem ser comprados e vendidos no mercado aberto como qualquer outra criptomoeda, e, quanto mais um hot spot é usado, mais tokens $HNT ele gera.

A Helium, fundada em 2013, não começou como uma empresa de criptomoedas. Seus fundadores originalmente tentaram construir uma rede sem fio peer-to-peer de longo alcance à moda antiga – convencendo pessoas e empresas a criar pontos de acesso e conectá-los. Mas eles tiveram dificuldade de conseguir participantes suficientes e a rede parou.

Frank Mong, diretor de operações da Helium, disse que a empresa estava ficando sem dinheiro em 2017, quando um engenheiro sugeriu, enquanto bebiam uísque, que mais pessoas poderiam estar dispostas a criar pontos de acesso se pudessem ganhar criptomoeda fazendo isso. “Esse modelo de incentivo, alimentado por criptomoedas, realmente fazia sentido neste caso”, comentou ele.

Assim, a empresa se livrou do antigo modelo de negócios e optou por um novo. Em vez de construir uma rede própria, a Helium a tornaria totalmente descentralizada e permitiria que os usuários a construíssem comprando e conectando os próprios pontos de acesso. Os participantes seriam pagos com tokens criptográficos e votariam nas ideias propostas para mudanças na rede. Se o preço dos tokens aumentasse, eles ganhariam ainda mais dinheiro e criariam ainda mais pontos de acesso.

O novo modelo, lançado em 2019, funcionou com perfeição. Os fãs de criptomoedas correram para configurar pontos de acesso da Helium e começar a gerar tokens de criptomoedas. Trocaram dicas no Reddit e no YouTube para aumentar o alcance dos pontos de acesso, instalando-os em prédios altos ou colocando antenas no telhado de casa. Alguns proprietários de hot-spots afirmam ter ganhado milhares de dólares por mês dessa forma, embora os ganhos tenham caído à medida que mais pontos de acesso foram adicionados à rede.

Aprendi que esse é um dos superpoderes das criptomoedas: a capacidade de iniciar projetos, fornecendo um incentivo para que saiam do chão. Nem tudo pode melhorar com a criação de um esquema de mineração de criptomoedas. Mas, no caso da Helium, a criptomoeda fazia sentido como forma de incentivar a participação e de dar aos proprietários de pontos de acesso a satisfação de construir algo que pertencesse a eles.

Há muitas coisas interessantes a respeito da Helium. Ao contrário de muitos projetos de criptografia, esse é um produto real usado por pessoas e empresas reais diariamente. Os envolvidos não são especuladores descarados, e a maioria parece estar genuinamente interessada em criar uma rede sem fio descentralizada. (Uma regra fundamental do servidor de bate-papo Discord, com 140 mil membros da Helium, é que você não tem permissão para discutir preços de tokens.) Além disso, a rede vai se tornar ainda mais útil nos próximos meses, porque novos tipos de ponto de acesso 5G permitem o envio de dados a uma velocidade ainda maior.

Além disso, o blockchain da Helium é protegido com um tipo de algoritmo conhecido como “prova de cobertura”, que requer muito menos energia do que os algoritmos de “prova de trabalho” usados pelo Bitcoin e por outras criptomoedas, e é significativamente menos prejudicial ao meio ambiente. (A Helium diz que seus pontos de acesso usam aproximadamente a mesma quantidade de energia que uma lâmpada de cinco watts.)

Só para ter certeza de que não estou sendo enganado aqui, vamos submeter o aparelho da Helium a um teste simples. Ele resolve um problema não criptográfico? Sim. Existem milhões de dispositivos conectados no mundo, e conectar esses dispositivos à rede Helium é significativamente mais barato do que comprar um plano de dados de celular para cada dispositivo. Por causa do longo alcance dos pontos de acesso, a rede da Helium também pode chegar a lugares a que as redes Wi-Fi e celulares não chegam.

É útil para algo que não seja especulação? Sim. A própria rede Helium tem valor e, embora os proprietários de pontos de acesso possam lucrar quando o preço de $HNT sobe, a principal maneira de ganhar dinheiro é adicionando novos pontos de acesso, e não por meio da compra e da venda de tokens $HNT em uma exchange de criptomoedas.

A Helium poderia ter funcionado sem a tecnologia de criptografia? Provavelmente, não. A empresa tentou a abordagem não criptográfica e quase faliu. Mas adicionar tokens à mistura resolveu o que os tecnólogos chamam de “problema da partida a frio” – o fato de que atrair os primeiros usuários para uma nova rede geralmente é difícil porque esta ainda não é muito valiosa.

A Helium não é perfeita. Como muitos projetos de criptomoedas, ela existe em uma área regulatória cinzenta e os usuários podem se dar mal se Washington decidir interromper seu uso. (Os reguladores federais sugeriram que muitos tokens criptográficos podem se qualificar como títulos, o que poderia sujeitar os proprietários de pontos de acesso da Helium às complexas leis de títulos mobiliários.) E, agora, a maioria dos pontos de acesso está em cidades com alta densidade populacional, o que os torna menos úteis para pessoas em áreas mais remotas.

Colocar um ponto de acesso da Helium em casa também pode violar tecnicamente os termos de serviço do seu provedor de serviços de internet, porque envolve a revenda de uma parte de sua banda. Os termos de serviço para assinantes do Comcast Xfinity, por exemplo, proíbem o uso da conexão “para qualquer finalidade que não seja o uso residencial pessoal e não comercial”. Até agora, os provedores de serviços de internet não reprimiram os usuários da Helium, mas isso pode mudar. “Esperamos que os provedores de internet tenham a mente aberta para explorar as possibilidades da Helium”, disse-me Mong.

O que aprecio na Helium, apesar dessas limitações, é que empresa evitou o hype e os exageros que cercam muitos projetos com criptomoedas. Ela não promete revolucionar o comércio e a cultura, livrar-nos da censura do governo ou mudar nossa vida cotidiana. A empresa oferece apenas uma parte útil da infraestrutura do mundo real, anexada a um esquema de mineração de criptomoedas que permite que tudo funcione sem uma grande empresa como intermediária.

c. 2022 The New York Times Company

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