Professora denuncia escola particular de João Pessoa por supostas práticas de trabalho racistas e abusivas

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Escola de educação infantil está sendo processada por prátivas trabalhistas abusivas e descriminatórias, em João Pessoa — Foto: Escola Filhos do Sol/Divulgação

Uma escola particular de João Pessoa foi denunciada na Justiça por supostas práticas de trabalho abusivas e discriminatórias contra funcionários negros. A denúncia foi apresentada por uma ex-funcionária, e a primeira audiência do caso aconteceu no dia 13 de maio, com a mulher relatando uma jornada de trabalho extensa e responsabilidades além das inicialmente contratadas. A defesa da escola nega as acusações.

A denunciante vai ter a identidade preservada por razões de segurança. A ex-funcionária da escola Filhos do Sol, localizada no bairro Pedro Gondim, afirma que no ambiente de trabalho faltava clareza nas responsabilidades e existia discriminação. Ela diz que apesar de desempenhar funções de professora, não era reconhecida como tal pela escola, não tinha sua carteira de trabalho regularizada como professora e recebia menos do que os professores não negros.

“As maiores dificuldades foram ouvir que era muito vitimismo, que os próprios negros são racistas.”

A vítima, inicialmente residente em Curitiba, conta que mudou-se para a Paraíba em 2022 justamente por conta da proposta ofertada pela escola Filhos de Sol. Ela assumiria o cargo de auxiliar de classe e a expectativa era a de que ela desempenhasse tarefas como organizar, guardar, zelar e servir como um apoio ao professor da turma.

Logo após o início do contrato, ela relata ter sido encarregada de realizar tarefas não relacionadas ao ensino, como limpeza e faxina das salas e o preparo de alimentos. Posteriormente, a pressão da empresa se estendeu à execução da higienização dos dois parques recreativos da instituição, dos banheiros de cada sala, do banheiro de uso coletivo e também da cozinha. “Era uma situação de extrema necessidade”, pontua.

A ex-funcionária afirma que as outras funcionárias da mesma função não faziam as mesmas tarefas e que ela era tratada de forma diferente por ser negra, destacando situações desconfortáveis nas quais se sentiu coagida.

“Em uma conversa, ela (a diretora) falou também que eu poderia ser ajudante de cozinha, caso eu tivesse precisando de dinheiro. Imediatamente falei, como assim, não tenho nenhum curso de capacitação de cozinheira, eu não sei nem cozinhar, então não estou entendendo por que vocês estão me oferecendo isso de cozinha, eu não tenho nem currículo pra isso!”, conta.

Perseguição e coerção

“Sobre a perseguição, sempre aconteceu. Sempre ouvi ‘você não limpou direito’, quando limpar nem era minha função. Sempre me coagiram. Sempre a ameaça de que eu tenho que vestir a camisa da empresa e eu não tenho que reclamar porque ‘você é uma funcionária de muitos porquês, quer ficar pedindo explicação de tudo, quer ficar sempre pontuando alguma coisa’, afirmou ela ao site g1.

Outro momento relatado por ela aconteceu após ela compartilhar a importância do mês da Consciência Negra no grupo de pais e mães. A ex-funcionária disse que recebeu uma ligação da diretora solicitando uma reunião. No encontro, a diretora, acompanhada de uma secretária e uma representante do setor financeiro, confrontou a professora, buscando intimidá-la durante a conversa.

“Ela (a diretora) ficou me olhando um bom tempo, minutos. Aí disse ‘eu quero que você me responda, se a gente fosse racista, a gente teria contratado pessoas pretas? Se a gente fosse racista a gente estaria pagando o supletivo da Luciana*?’. Luciana é essa menina da limpeza que sofre racismo lá dentro e eles tentam calar a boca dela oferecendo ajuda pra pagar o supletivo. ‘Você quer fechar essa escola?’. Aí começou a alterar o tom de voz”, conta a ex-funcionária.

A vítima menciona que, ao levar questões raciais à diretoria da escola, foi alvo de perseguição. Ela relata casos de eventos racistas envolvendo alunos e colegas de trabalho e como, ao tentar resolver essas questões, ela foi vista como alguém que “estava querendo arranjar confusão”.

Apesar de reportar os incidentes à coordenação, esta se isentou de tomar medidas para resolver os problemas, alegando que essa responsabilidade não lhe cabe.

Além disso, questões salariais e falta de pagamento pelas férias contribuíram para sua insatisfação e eventual pedido de demissão da funcionária. Ela solicitou a rescisão indireta do contrato de trabalho devido a várias razões, incluindo questões como serviços alheios ao contrato, rigor excessivo e atraso no pagamento do FGTS.

Logo no início do processo, em dezembro de 2023, a ex-funcionária incluiu na petição inicial questões relacionadas à discriminação racial que estava enfrentando.

“Eu dei entrada e comecei a fazer terapia. Não consegui dar continuidade no meu atendimento, mas cheguei a fazer atendimento com eles e a terapia com o meu psicólogo”, conta a vítima.

Ex-funcionária diz ter visto outras situações de racismo na escola

A ex-funcionária afirma que testemunhou também situações de racismo recreativo entre crianças, incluindo um incidente em que uma criança se recusou a brincar com outra por causa da textura do seu cabelo. Segundo ela, após relatar o ocorrido à direção e à professora responsável pela turma, encontrou resistência em tomar medidas adequadas. Ela diz que a professora minimizou o incidente como “coisa de criança” e a diretora não tomou nenhuma providência, deixando-a sem qualquer retorno sobre suas preocupações.

Em outro momento, a vítima afirma que viu uma criança chamar o piscineiro da escola de “queimado” por ele ser negro. A mesma criança teria chamado uma funcionária da limpeza de “macaca” e disse que o cabelo dela era “duro”. Essa mesma profissional de limpeza foi alvo de comentários depreciativos, segundo a ex-funcionária, por parte de parentes das donas da escola.

Segunda ela, todas as situações foram minimizadas ou ignoradas, demonstrando o descaso da instituição com o sofrimento das vítimas e com a inclusão social.

Seu advogado, Henrique Dantas, disse ao site g1 que no início do processo, quando a cliente ainda morava em João Pessoa, ela foi encaminhada para o Centro da Igualdade Racial João Balula, onde ficou sendo acompanhada.

“E infelizmente, a maioria das pessoas da escola das professoras são brancas e poucas são negras. Uma delas eu tive apoio, mas ela saiu da escola, inclusive também moveu um processo e saiu por questão também de diferença racial com ela”, relata a vítima.

Testemunhas mencionam descriminação e práticas salariais atípicas

A primeira testemunha ouvida na audiência judicial corroborou com o relato da ex-funcionária, descrevendo suas próprias experiências na escola. Ela testemunhou sobre as condições de trabalho, incluindo suas responsabilidades e a falta de intervalos adequados. Também mencionou práticas salariais atípicas, como receber uma bolsa de estudo em troca de trabalho. Além disso, mencionou casos de discriminação percebidos, como a atribuição desigual de tarefas de limpeza.

A segunda testemunha da vítima também era ex-funcionária da escola Filhos do Sol, mas foi contradita porque a juíza entendeu que ela era amiga íntima da reclamante.

Entretanto, a defesa da denunciante informou que essa testemunha solicitou rescisão indireta por motivos semelhantes, citando discriminação racial e racismo por parte da gestão da escola. Ela e a empresa entraram em um acordo.

Ao site g1, essa ex-funcionária também criticou a gestão da escola pela falta de compromisso com as questões étnico-raciais, alegando que as iniciativas relacionadas ao tema eram superficiais. “Não havia formação nem abordagem pedagógica com as crianças”, afirmou.

A ex-funcionária, que trabalhou na escola por um semestre, disse que testemunhou atrasos no registro de seus documentos, ausência de vale-transporte e exigências de participação em eventos fora do horário de trabalho sem compensação. Em uma reunião, ao confrontar a gestora financeira sobre essas questões, a ex-funcionária afirmou ter sido assediada com a justificativa de que “deveriam trabalhar por amor”.

“Vi pelo menos quatro professores pedindo as contas, dois deles negros residentes em Recife e que objetivamente se retiraram por não receberem adequadamente e por observarem total indiferença no que se refere as relações étnicos raciais no currículo escolar e trato cotidiano”, disse.

Sobre sua colega, ela aponta que apesar de ter assumido a função de professora titular antes de sua saída, nunca foi formalmente reconhecida como tal. “Ela foi deixada de lado, uma violência psicológica e discriminação claras”, afirmou a ex-funcionária. Segundo ela, a gestão da escola justificou a falta de reconhecimento formal com base no fato da reclamante estar em formação, enquanto outras profissionais, sem a mesma qualificação, ocupavam posições de destaque.

Escola nega durante depoimento

Durante a audiência, uma funcionária da escola Filhos do Sol que atuou como testemunha da escola negou que tais eventos racistas tenham ocorrido, afirmando que a instituição sempre se preocupou com essas questões. Por exemplo, a escola teria realizado algumas atividades para trabalhar o tema do racismo com as crianças em 2022.

Outra funcionária testemunhou sobre a evolução das responsabilidades da reclamante na escola, desde sua contratação até sua promoção para professora regente. Embora negue a ocorrência de discriminação racial na escola, ela confirma algumas que mudanças estruturais e operacionais na instituição podem ter afetado os funcionários.

O site g1 tentou contato com a Escola Filhos do Sol por meio de seu telefone e também através do seu advogado, Claudemir Maia. Em resposta às acusações, a defesa negou veementemente as alegações.

De acordo com o advogado, a então funcionária teria se desmotivado quando estava com 70% do curso de pedagogia concluído e, a partir daí, teria disseminado informações falsas em um grupo de WhatsApp. A defesa argumenta que o atual processo é baseado em conversas de terceiros e que é prematuro fazer qualquer juízo de valor enquanto o caso ainda está em tramitação.

A escola ainda se define como uma instituição inclusiva, que acolhe pessoas de várias etnias, embora não tenha especificado quais são as ações concretas de inclusão realizadas na Filhos do Sol.

Vítima foi embora de João Pessoa: ‘sigo confiante na vitória da justiça’

Depois de entrar com o processo, a ex-funcionária decidiu sair de João Pessoa. Para ela, o caso serve como um alerta para a sociedade sobre a importância de combater o racismo estrutural.

Sua colega que igualmente saiu da Filhos do Sol através de uma rescisão indireta por motivos semelhantes, citando discriminação racial e racismo, também se encontra fora do estado.

“Uma situação tão doída, tão sofrida, que eu só queria ir embora daí quando o ano finalizou”, disse a reclamante.

Já o processo de recuperação se dá de forma lenta e dolorosa: “além de não receber meus direitos trabalhistas, tenho lidado com as consequências psicológicas do racismo e da violência. Para cuidar da minha saúde mental, busquei ajuda profissional em terapia e continuo em tratamento até hoje. Ainda que a luta tenha sido árdua e dolorosa, sigo confiante na vitória da justiça”, pontua.

*Nome fictício adotado nesta reportagem para preservar a identidade da vítima.

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