Putin quer Rússia ‘purificada de traidores’ contrários à guerra na Ucrânia

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Vladimir Putin. © Getty Images

Por IGOR GIELOW

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em mais um sinal preocupante para aqueles que temem o endurecimento do controle de Vladimir Putin sobre a Rússia, o Kremlin disse nesta quinta (17) que o país precisa passar por uma “auto purificação” para se livrar de “traidores” contrários à guerra na Ucrânia.

“Nesses temos difíceis, muitas pessoas mostraram o que são. Traidores”, disse o porta-voz de Putin, Dmitri Peskov, elaborando sobre a fala na véspera do presidente, que havia acusado o Ocidente de plantar uma “quinta coluna” para gerar “conflito civil” no seu país.

Segundo ele disse numa entrevista coletiva virtual no Kremlin, a Rússia precisa passar por uma “auto purificação para distinguir patriotas verdadeiros da escória e dos traidores”.

Os comentários vêm na sequência de uma série de protestos contra a guerra na Ucrânia, como o da editora de um telejornal estatal que mostrou um cartaz contra o conflito ao vivo e inúmeros intelectuais e artistas que deixaram seus postos em entidades ligadas ao governo.

Até a primeira bailarina do mais famoso balé russo, o do Teatro Bolchoi em Moscou, deixou a posição em protesto pela invasão do país vizinho, iniciada por Putin há exatas três semanas. Na narrativa putinista, tudo isso é resultado de o Ocidente ter imposto sanções a partir de uma guerra que forçou sobre a Rússia.

Para evitar comparações com o período mais brutal da existência da União Soviética, o governo do ditador Josef Stálin (1927-53), Peskov disse que o processo já está em curso de forma “natural”. “Eles desaparecem sozinhos de nossas vidas. Algumas pessoas estão deixando seus postos, outros o trabalho, outros o país. É assim que a purificação acontece”, disse.

“Eu achei a fala absolutamente assustadora, parece coisa do Gulag”, diz Svetlana, uma jornalista que trabalha para sites independentes e está considerando deixar a Rússia para encontrar o namorado, o cientista político Mikhail, que foi para Riga (Letônia) ficar com parentes. Ambos pedem para não divulgar seus sobrenomes.

Gulag (acrônimo russo para Chefia de Administração de Campos) era o sistema de campos de concentração para adversários do regime comunista, instaurado sobre o modelo czarista pelo fundador do Estado soviético, Vladimir Lênin, em 1923. Até 1961, 18 milhões de pessoas passaram por eles, a maioria nas décadas de 1930 a 1950, sob Stálin.

Conhecedor da causa, o líder do Partido Comunista, Guennadi Ziuganov, disse que “nós precisamos derrotar a quinta coluna que está pronta para nos esfaquear pelas costas”. A agremiação é a maior da oposição consentida a Putin, mas não avança o sinal e se alinha ao Kremlin em momentos como o atual.

O caso da editora Marina Ovsiannikova, que trabalhava na TV estatal Canal Um e fez seu protesto com um cartaz ao vivo na segunda (14), é exemplar. Ela foi multada num julgamento administrativo relâmpago na terça (15), mas diz seguir sob risco –a França já ofereceu asilo a ela.

Isso porque a Procuradoria russa disse que ainda estuda processá-la criminalmente, sob os termos da lei aprovada logo depois do início da guerra que prevê até 15 anos de prisão para quem espalhar o que o Kremlin considera fake news sobre a “operação militar especial”, o nome oficial do conflito para Putin.

Svetlana era daquelas que achava que a lei era uma intimidação justamente para afugentar a classe média contrária à guerra, que tem lotado hotéis e imobiliárias em Istambul, Tbilisi, Riga e outras capitais de países próximos.

“Agora já acho que pode ser algo pior”, afirmou, em consonância com o temor de que o regime autocrático de Putin, que sempre teve válvulas de escape libertárias para a elite e para a classe média, venha a se fechar de vez numa ditadura –em especial se tiver uma vitória militar a vender na Ucrânia.

Ela se comunica pela rede Telegram, a mais usada pelos russos. Disse que recebeu o aviso de seu banco que o cartão de crédito internacional que ela usa, que lhe permite acessar sites estrangeiros pagando um serviço de VPN (redes que usam servidores em outros países, burlando censuras locais), vai expirar até domingo (20).

“Sem perceber, a Visa e a Mastercard [que saíram da operação russa] estão ajudando Putin”, escreveu no Twitter o cientista político Andrei Kolesnikov, do Centro Carnegie de Moscou.

Também nesta quarta, a Justiça russa estendeu em dois meses a prisão de Brittney Griner, a estrela do basquete americano que joga na Rússia e foi detida em um aeroporto de Moscou, sob acusação de trazer óleo de haxixe na mala –o que pode dar 10 anos de cadeia. O advogado dela diz que a atleta está sendo perseguida só por ser americana.

Isso não significa, contudo, que haja um movimento contra a guerra majoritário na Rússia. As pesquisas disponíveis, todas estatais e, portanto, suspeitas, colocam o apoio na casa dos 60%. Muito se deve ao fato de que as pessoas mais velhas se informam majoritariamente pelos meios estatais, TV aberta principalmente.

Obviamente, a situação muda entre os mais abastados e jovens, que agora veem a ideia de uma Rússia ocidentalizada esfarelar com a guerra de Putin. Há cerca de 15 mil pessoas que foram detidas e depois soltas por protestar contra o conflito desde 24 de fevereiro, segundo a ONG OVD-Info. É bastante gente, mas número declinante e que não configura a revolução que as TVs ocidentais gostam de pintar.

A chave para qualquer mudança reside na elite do país, que até aqui se mantém fiel ao chefe do Kremlin, apesar de sinais aqui e ali de dissenso. Se isso será suficiente para estimular um movimento palaciano contra Putin, é insondável de fora.

Ainda nesta quinta, o chefe da principal empresa do país, a estatal de gás Gazprom, convocou seus 500 mil funcionários a defender Putin. “Hoje, como nunca, é importante nos mantermos comprometidos com a causa comum, apoiar nosso presidente”, escreveu Alexei Miller em uma carta aos empregados.

Miller é aliado de Putin desde que o atual presidente trabalhava para o prefeito liberal de São Petersburgo Anatoli Sobtchak no começo dos anos 1990. Ele criticou as sanções ocidentais à Rússia no texto, que não cita a guerra nominalmente e é datado do dia 5.

A Gazprom é a maior acionista dos projetos Nord Stream, a dupla de gasodutos Rússia-Alemanha cujo segundo ramo está congelado como retaliação de Berlim pela guerra.

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