Entre lares: grupo de mulheres acolhe vítimas de violência doméstica que precisam fugir de suas casas

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Foto: Wagner Magalhães/G1

“Ele dizia que nasceu para viver como homem correto e honesto, eu acreditei”, diz mulher que precisou fugir de casa após sofrer violência doméstica. Ela vivia em João Pessoa e não tinha mais esperança de escapar do lugar de risco, até que uma amiga lhe contou que havia um grupo de mulheres abrindo suas casas para receber vítimas em fuga.

Esse grupo decidiu começar a acolhida em 2017, e as integrantes preferiram não se identificar por serem uma iniciativa independente, não-governamental, além de evitar colocar as vítimas em risco. A reportagem vai chamá-las de acolhedoras.

“Decidimos que, oficialmente, o projeto não existiria, para evitar qualquer risco. Já fomos ameaçadas, usamos nossas próprias casas, precisamos evitar qualquer tipo de exposição”, afirma a mulher que aceitou conversar com o g1.

No início eram 4 mulheres, depois se tornaram seis. Elas se conheceram no ambiente profissional, entre professoras, jornalistas e uma servidora pública já aposentada. Tudo começou por terem amigas em comum que estavam precisando sair de casa com urgência. A urgência de quem tem a vida ameaçada constantemente.

“Num curto espaço de tempo, tínhamos amigas que tinham sido expulsas de casa violentamente, com todos os pertences colocados na rua. Na mesma semana duas outras moças conhecidas passaram por violências mais graves, e elas tinham filhos. O medo de denunciar era grande”, explica uma das acolhedoras.

Foi por causa da série de coincidências que decidiram colocar suas casas à disposição. As residências se tornaram esconderijos, um lugar onde as vítimas podiam recorrer para dormir, passar uns dias em segurança e receber orientações quanto aos próximos passos. As acolhedoras deixavam as mulheres cientes dos direitos, ajudavam as que queriam denunciar com suporte para pedido de medida protetiva, e as que não queriam, recebiam suporte estrutural e financeiro para sair do estado em segurança.

“Já aconteceu de duas, ao mesmo tempo, ficarem escondidas na minha casa. A gente ficava alerta, tentava não deixá-las sozinha e garantir que ninguém desconfiasse. Às vezes mudávamos as vítimas de casa durante o tempo de acolhimento. O sentimento era um pouco de perseguição”, desabafa.

A intenção era criar uma rede de apoio para mulheres que não as tinha. Viabilizar empregos em outras cidades, para tirar as mulheres da condição de dependência financeira, também fazia parte dos planos e tentativas das acolhedoras.

Pedidos de socorro

As acolhedoras recebem mulheres que saíram de casa só com a roupa do corpo.  — Foto: Arquivo pessoal
As acolhedoras recebem mulheres que saíram de casa só com a roupa do corpo. — Foto: Arquivo pessoal

Em 2018, quando as mulheres estavam há quase um ano abrindo as portas de casa para as vítimas, Bruna* se viu violentada pelo homem que lhe jurou amor e respeito, e teve que sair de casa deixando os filhos. Ela foi uma das vítimas auxiliada pelas acolhedoras. A história do casal começou nos anos 2000, quando ela tinha 21 anos e cursava uma graduação.

Ambos moradores de João Pessoa, foi no local de estágio que Bruna conheceu o rapaz que se tornaria seu marido. O namoro durou um ano:

“Ele dizia que nasceu pra viver como homem correto e honesto. Eu acreditei. Ele era da igreja e isso me tocou muito o coração na confiança”, relata com apreensão.

Veio o casamento, tudo muito rápido, segundo ela. Um dos principais enlaces aconteceu ainda na lua de mel, quando se viu grávida da primeira filha. Bruna comemorou, o marido demonstrou desagrado, queria um menino. Seria essa a primeira de muitas rupturas no casal.

“Tivemos outro filho, esse sim um menino. Éramos uma família simples, e eu achava que seríamos felizes, mas logo no início algumas coisas aconteceram e eu não imaginava que chegaria no sofrimento que chegou. Com o nascimento do meu menino tive de largar o trabalho. Sofri muito, mas ele não me queria trabalhando sem cuidar dos filhos, larguei”, conta Bruna.

Não se ver enquanto fonte de renda angustiava a mulher, mas não era uma situação permanente. Quando as contas apertavam ela precisava fazer ‘bicos’ como faxineira, o que desagradava o marido, ainda que fosse fundamental na tentativa de custear as despesas da casa. A crise que se arrastou por quase duas décadas se expandiu em 2017, quando ele ficou desempregado.

“Ele, que sempre bebia aos fins de semana e brigava com as picuinhas do dia a dia, começou a brigar mais. Nossa filha que tinha saído para estudar no Rio de Janeiro estava para casar com um homem que não é evangélico, e para meu marido eu virei culpada por ela ter se tornado uma put*”, desabafa Bruna.

As discussões se acentuaram e a vítima afirma que os motivos eram sempre torpes. Incômodo por estar desempregado, por Bruna manter as contas da casa em dia, por detalhes de uma rotina que a obrigava a se virar em muitas, diante das obrigações dos cuidados com a casa, que também eram dela. O relacionamento era abusivo, mas ela diz que foi num domingo de 2018 que viu uma das piores faces da violência doméstica, a agressão física.

“Eu cheguei de mais uma faxina e ele tava muito bêbado, com raiva porque tinha queimado o feijão na hora de esquentar, me acusou por não estar em casa para fazer isso. Ele me olhou com tanta raiva, me pegou pelo braço e quando vi estava apanhando. Estávamos sozinhos em casa. Apanhei por quase 30 minutos”.

No dia seguinte à primeira agressão física Bruna se deparou com a próxima fase do ciclo de violência, onde os agressores pedem desculpas e tentam culpabilizar as vítimas. Segundo a advogada Izabelle Ramalho, presidente da Comissão de Combate à Violência contra a Mulher da OAB/PB, a chamada fase da ‘lua de mel’ se dá pela tentativa dos agressores de atenuar os impactos da agressão, com intenção de garantir que aquilo foi um caso pontual.

Ciclo da Violência Doméstica — Foto: Reprodução/Cartilha Polícia Civil sobre Violência Contra a Mulher
Ciclo da Violência Doméstica — Foto: Reprodução/Cartilha Polícia Civil sobre Violência Contra a Mulher

“Nenhum relacionamento afetivo começa com tapas, começa com afetos. Até que chega a uma tensão que causa a explosão da violência. Existem aspectos subjetivos que fazem a mulher acreditar que aquilo vai mudar, é uma relação longa, envolve filhos e uma vida. Não é simples, é a pessoa com quem você tem uma história”, explica a advogada.

Foi por acreditar nisso que Bruna permaneceu casada depois da agressão. Chegou a procurar suporte de um pastor, que a orientou a seguir em casa e perdoar o marido. Mas a fase da lua de mel chegou ao fim, e veio mais uma explosão.

“Apanhar era uma caminho sem volta. Quando ele percebeu que eu ganhava mais que ele, apanhei. Quando paguei uma conta alta da cachaça dele no depósito, apanhei. Apanhei quando pedi para economizar na conta de energia, tanto que não consegui trabalhar. Não aguentava mais a situação, disse que queria a separação. Ele ameaçou dizendo que eu não ia ter nada, pois tudo estava no nome dele. Apanhei novamente. Duas vezes no mesmo dia”.

Bruna cansou de ser violentada, contou tudo para a filha que morava no Rio de Janeiro, ela ficou surpresa e disse que conseguiria um meio de tirá-la de casa em segurança. Foi quando Bruna conheceu as acolhedoras. Queria ir morar com a filha, mas não tinha dinheiro nem sabia como chegaria lá. Depois da última agressão do seu casamento, saiu com a roupa do corpo, com o pretexto de que iria até um mercadinho, e foi levada até o apartamento de uma das acolhedoras.

“Estava abandonando minha vida para viver. Chorei tanto. Quando cheguei ao lugar tinha flores e plaquinhas dizendo que eu era guerreira e estava segura. Queriam que eu fosse dar parte da delegacia da mulher, eu não queria. Tinha medo de machucar meus filhos e ainda mais por ir embora deixando tudo assim. Passei 3 dias lá”, desabafa.

Campanha contra violência doméstica — Foto: Divulgação/Governo da Paraíba
Campanha contra violência doméstica — Foto: Divulgação/Governo da Paraíba

Durante o tempo no acolhimento, Bruna era procurada e ameaçada pelo, então, marido. Mas ela estava disposta a ter coragem. Recebeu todo tipo de suporte, as mulheres mediaram o recebimento de roupas e sapatos novos, conseguiram uma passagem de avião e Bruna foi, em segurança, viver a nova vida em outro estado, ao lado da filha.

“Na manhã da viagem, me despedi do meu filho, pedi perdão e ele me disse que estava fazendo o certo e que depois ia ficar comigo. Perdi 14 quilos com tanta dor. Cheguei no Rio e fui bem tratada, aqui voltei a ser enfermeira. Não tenho nada da minha história, mas tenho paz. Só temo reencontrar esse homem, mas ele não sabe onde estou. Estou segura”, finaliza.

Vidas que escapam das estatísticas

Apesar de doloroso e longe do ideal, a história de Bruna parece ter um final feliz. Isso se comparada às estatísticas de mulheres cuja série de violências culminam no feminicídio. Bruna nunca denunciou, nem pediu medida protetiva. Seu risco e sua vida escaparam, perigosamente, das estatísticas.

Conforme os dados da Secretaria de Segurança e da Defesa Social da Paraíba, solicitados pelo g1 pela Lei de Acesso à Informação, em 2020 foram registradas 5008 denúncias de violência contra a mulher. Dessas, mais de 70% se sentiram em risco de reincidência e pediram Medida Protetiva de Urgência (MPU).

A medida é assegurada pela Lei Maria da Penha, e visa garantir que, no correr das investigações, o agressor não possa se aproximar das vítimas, e muitos especialistas veem essa alternativa como uma chance da mulher não precisar fugir de casa como fez Bruna.

No entanto, a advogada Izabelle Ramalho destaca a importância de mulheres vítimas de violência terem lugares seguros para recorrer:

“Denunciar não é simples, muitas têm medo de sofrer represália da própria família, da família do agressor e da sociedade. A falta de flagrante pode desencorajá-las também”, explica Izabelle.

Desencorajada foi algo que Daiane* se sentiu desde cedo, quando aos 10 anos de idade se viu sofrendo violência. Tentou de diferentes formas possíveis buscar um acolhimento que pusesse fim a violência. Mas sua história não se encaminhou como a de Bruna, e a falta de suporte lhe acompanhou ao longo do tempo, e prestes a completar 30 anos de idade segue temendo pela própria vida por causa do mesmo agressor.

Quando criança as violações começaram sorrateiras, sem que Daiane sequer entendesse o que estava acontecendo. Até que um dia, um agressor com um rosto conhecido, o homem que dividia a vida com sua mãe e morava sob o mesmo teto de Daiane passou a lhe abusar sexualmente. Desde cedo os abusos se misturavam às violências psicológicas e ameaças de morte, no caso dela tentar contar o que acontecia para alguém.

“Minhã mãe chegou a ver o que acontecia, mas ela não fez nada. Eu fiquei calada por muito tempo, ele ameaçava me matar ou matar alguém que eu gostava muito”, relata Daiane.

Nesta reportagem, as vítimas optaram por não se identificar em imagens para se proteger  — Foto: Reprodução / TV Grande Rio
Nesta reportagem, as vítimas optaram por não se identificar em imagens para se proteger — Foto: Reprodução / TV Grande Rio

Nenhuma parte da sua vida escapava da violência que se misturava entre sexual, física e psicológica. Daiane vive no Sertão da Paraíba, é uma mulher pobre que lida com as durezas da vulnerabilidade social e com as dificuldades do acesso à educação, e os costumes e tradições contribuíram para que a sociedade lhe orientasse a um silêncio que só a fazia sofrer.

Assim, ela foi guardando as violências até os 20 anos de idade, quando entendeu que deveria pedir ajuda. Buscou suporte de iniciativas de assistência social que haviam na cidade, recebia como resposta uma promessa de que falariam com o agressor, que o problema seria resolvido, mas nada aconteceu.

Os 20 e poucos anos deram duas filhas mulheres a Daiane, deram o desespero por mudar de vida e ver a violência chegar ao fim, mas não deram condições de subsistência para que ela pudesse sair da casa onde morava com a mãe e com o padrasto abusador. Apenas em 2019, com quase 20 anos de agressões de todos os tipos nas costas, o acolhimento veio.

Veio através de outras mulheres, um coletivo feminista que tentava prestar suporte às mulheres do Sertão que vivenciavam o pior lado do machismo. Com a rede de apoio Daiane conseguiu denunciar. Com auxílio do Centro de Referência de Assistência Social (CREAS), ela conseguiu um aluguel social que a possibilitou sair de casa. No entanto, com o processo em curso, o padrasto seguia a perseguindo, violentamente, pelas ruas da cidade.

Só em 2020 veio a primeira medida protetiva, mas quando o agressor descobriu que não poderia chegar perto de Daiane, tudo piorou.

“Quando ele recebeu a medida ele veio me agredir, e só assim foi preso. Passou seis meses na prisão e quando saiu a gente achava que ele me deixaria em paz, mas até hoje sou agredida. Tô na segunda medida protetiva e ele continua me batendo nas ruas, não tenho paz”, denuncia Daiane.

Daiane está na segunda medida protetiva contra o agressor. Com o vencimento ultrapassado, documento deve ser solicitado mais uma vez — Foto: Arquivo pessoal
Daiane está na segunda medida protetiva contra o agressor. Com o vencimento ultrapassado, documento deve ser solicitado mais uma vez — Foto: Arquivo pessoal
Daiane teme, ainda, pelo futuro das duas filhas. Acredita que ser mulher é um desafio, e gostaria que o mundo se apresentasse de outra forma para elas “não existe dor pior que essa, queria um mundo com uma lei mais severa, que permitisse que nós mulheres fossem valorizadas”, desabafa.

Prestes a completar 30 anos, na vivência de sertaneja, ela não esbarrou na casa de acolhida criada pelas mulheres da capital. Apesar de necessária, a iniciativa independente não dá conta de receber muitas vítimas, não dá conta de comprar-lhes roupas e sapatos, nem de enviá-las para longe. Apesar de necessário, o projeto já é uma alternativa para lidar com um Estado que também não tem dado conta, abarrotado de denúncias, com números que têm crescido ano a ano.

Padrões que se repetem

As histórias de Bruna e Daiane se diferem nas estatísticas. Sem denunciar, Bruna se manteve invisível para os dados de registro. Daiane não. Ela ocupa, ao mesmo tempo, diversos recortes. Conforme os dados da Patrulha Maria da Penha, mais de 80% das mulheres vítimas de violência doméstica são, assim como Daiane, negras. Mas o projeto não atende na cidade em que ela mora.

Desde 2019, cerca de 830 mulheres foram atendidas pelo programa da Secretaria Estadual da Mulher e Diversidade Humana. Antes que o ano acabe, só em 2021 já foram contabilizadas 319 vítimas. Segundo a secretaria, a maioria das mulheres assistidas estão em situação de desemprego.

A Patrulha Maria da Penha acolhe e monitora mulheres que solicitaram ou já estão com o deferimento das Medidas Protetivas de Urgência (MPUs), através de atendimento jurídico, psicológico, de assistência social e intervenção policial, vigilância, acompanhamento e monitoramento do perímetro arbitrado pela justiça e apontado pela mulher protegida. Possui sede em João Pessoa (atende 26 municípios) e em Campina Grande (atende 34 municípios).

Os números de mortes de mulheres também seguem o mesmo padrão racial. Os índices da Secretaria da Segurança e Defesa Social da Paraíba atestam que, entre 2016 e 2020, 426 mulheres foram vítimas de mortes violentas na Paraíba. Dessas, mais de 87% eram negras.

Lançando olhar sobre as mulheres do Sertão, o Governo da Paraíba inaugura nesta terça-feira (8) uma casa de acolhimento na cidade de Sousa, para atender mulheres sertanejas de toda região. No local, bem como a iniciativa independente citada nesta matéria, também será mantido o sigilo como ferramenta de proteção.

“A gente tenta entender que é uma rede, não tem como depender só do poder público”

Atuante desde 2017, a casa de acolhimento independente teve desafios para exercer seu papel protetivo durante a pandemia. Havia, segundo uma das integrantes, o cuidado para que ninguém fosse colocada em risco sanitário. No entanto, foi justamente nesse período que as atenções às proximidades ficaram mais atentas.

“No meio da pandemia eu escutava um grito de uma mulher, eu intervia. Interfonava, procurava saber. Se a mulher silencia, aí é que temos que procurar saber mesmo. A gente tenta entender que é uma rede, não tem como depender só do poder público”, relata.

Segundo o desabafo, nenhuma das acolhedoras enfrentou violência física ao longo da vida. Apesar disso, mais de uma se viu sendo vítima de vários níveis de violência psicológica e desrespeito por parte de homens da família.

“Sempre guardamos essa inquietude: as loucas são, hoje, as que tentam manter as outras em segurança. Nem todo mundo tem a nossa força e oportunidade de sair de casa, e essa é nossa forma de contribuir. O machismo mata muito a gente, e sempre é preciso alguém com sanidade para mostrar as outras que é possível”, conclui.

*Os nomes reais das vítimas estão protegidos a pedido delas, por segurança.

 

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