O que esperar da mediação de Lula em ditaduras na América Latina

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Presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e o líder venezuelano Nicolás Maduro. Foto: PT/Ricardo Stuckert

Por Gabriel Bandeira

De um lado, o passado ativista e militante do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Do outro, a necessidade de retomar as relações multilaterais com países da América Latina, uma assinatura diplomática brasileira deixada em segundo plano na antiga gestão de Jair Bolsonaro (PL). Esses dois elementos estão em jogo quando opositores e aliados do novo líder do Executivo precisam debater um tema caro e sensível ao petista: as ditaduras de esquerda no continente americano.

Desde o envio do assessor internacional Celso Amorim em uma viagem secreta para encontrar Nicolás Maduro em Caracas, em março, além da negativa brasileira em participar de um documento que condenava atos de tortura e extradição de cidadãos na Nicarágua durante encontro das Nações Unidas, os olhos de todos se voltaram, mais uma vez, para quais deverão ser os próximos passos do governo com relação às ditaduras de esquerda no continente. Em encontros internacionais, a diplomacia do Brasil tem repetido palavras como “mediação” e “conciliação”, mas políticos da oposição e ativistas dos direitos humanos cobram uma opinião mais dura e assertiva contra os regimes autoritários.

Nessa espécie de gangorra em que o petista tenta se equilibrar para achar o tom ideal, especialistas apontam dois interesses centrais que devem guiar o personagem brasileiro de mediador nos próximos anos. O primeiro deles, o desejo de manter as possibilidades de diálogo abertas, mesmo que elas só sejam deslumbradas mais à frente. De acordo com os analistas, essa posição casa com a tradição histórica da política externa brasileira, independente das gestões lulistas anteriores. Na outra mão, contudo, existe uma linha de velha-guarda dentro do próprio partido, da qual o atual presidente já fez parte. Ela ainda enxerga e admira rastros de revoluções comunistas da Guerra Fria em líderes como Daniel Ortega e Nicolás Maduro.

Interferência da velha-guarda do partido

“Existe uma tradição anti-imperialista dentro dos governos de esquerda da América Latina, uma leitura de mundo que combate o ideal unipolar, no qual os Estados Unidos são o único modelo possível”, explica André Reis, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Isso vem desde a época dos combates às ditaduras militares na América Latina que surgiram durante a Guerra Fria, como um argumento às ‘supostas ameaças da esquerda’”.

Durante esse período da história, os movimentos de esquerda se uniam e se fortaleciam dentro do continente para combater regimes autoritários de direita, seja com apoio financeiro, seja com trocas de bases ideológicas. Foi nessa época, por exemplo, que surgiu o alinhamento de ideais entre Daniel Ortega com Lula, durante a Revolução Sandinista na Nicarágua, entre 1979 e 1990, responsável pelo fim da ditadura do presidente Anastasio Somoza Debayle.

“Existe um pessoal da velha-guarda, integrante do Partido dos Trabalhadores, que acredita que Ortega e Maduro continuam a representar os mesmos ideais das décadas de 80 e 90. Eles tendem a fazer a vista grossa com os regimes por causa do alinhamento ideológico, o que não pode acontecer. Governo autoritário é governo autoritário, independente do jogo político. Certo?”, avalia Luiz Estrella, também especialista em Relações Internacionais pela UFRGS.

Estrella reforça, porém, que uma outra parte do PT já questiona se esses mesmos líderes revolucionários do passado ainda representam o que defendiam. “Essa parcela pensa que Ortega abandonou os princípios sandinistas desde o começo da sua ditadura e dos crimes cometidos contra os direitos humanos, incluindo tortura e prisão de opositores”.

Na avaliação do especialista, o tom escorregadio com o qual Lula trata assuntos relacionados aos governos venezuelanos e nicaraguenses é consequência dessa diversidade de posicionamentos dentro do próprio PT. Para evitar indisposição com diferentes linhas de pensamento do partido, o presidente adota falas pouco objetivas em entrevistas e encontros internacionais.

Membros da diretoria do Partido dos Trabalhadores consultados pela reportagem alegam, contudo, que não faz parte das diretrizes internas da organização apoiar qualquer tipo de “governo ditatorial”. Eles informam que, nos últimos debates, o partido não alinharam uma opinião interna sobre tratativas com relação à Venezuela e à Nicarágua, mas reforçaram a defesa da “soberania interna” e da “autodeterminação dos povos”. De acordo com a mesa diretora, os países devem ter liberdade para resolver as próprias questões.

Em 2021, um tweet publicado pelo perfil oficial do PT em celebração à vitória de Ortega nas eleições presidenciais da Nicarágua, questionada por inúmeros organismos internacionais, foi desautorizado e apagado pela diretoria minutos depois. Gleisi Hoffmann, presidente do partido, veio à rede social para falar que a nota não havia sido submetida para avaliação de superiores e, por isso, não expressava a opinião do movimento.

Mediação nas eleições venezuelanas de 2024

Apesar dos supostos interesses ideológicos e do saudosismo de uma velha-guarda no PT, a política externa brasileira é conhecida internacionalmente pela postura de conciliação e mediação em conflitos. Lula adotou esse tom com relação à guerra entre Ucrânia e Rússia e mostra indícios de fazer o mesmo com crises observadas nos países vizinhos, como a Venezuela.

“O Brasil é um país desprovido de recursos materiais, econômicos, militares, então, na sua busca por um protagonismo internacional, dá preferência aos espaços multilaterais e ao diálogo. Em 2003, por exemplo, o governo brasileiro criou o grupo Amigos da Venezuela para ajudar o governo chavista durante a crise petrolífera. O Brasil se beneficia de um entorno regional estável, e isso sempre esteve presente na política externa brasileira”, explica Alcides Cunha, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).

Segundo Cunha, o governo Lula herdou uma aproximação com países latinos iniciada no mandato de Fernando Henrique Cardoso, responsável por realizar o primeiro encontro com a presença de todos os presidentes da América do Sul, em Brasília. Desde então, o Brasil fortaleceu os laços de aproximação com governos latinos e reforçou um posto de influência que pode ser aproveitado em crises democráticas na Venezuela e na Nicarágua.

“A gestão Bolsonaro foi um ponto fora da curva com esse isolamento dos parceiros locais por um viés ideológico. A política externa brasileira sempre possuiu uma diretriz de interlocução. No caso de Maduro, a linha ideológica do novo governo do Brasil facilita ainda mais a conversa, por mais que passos pequenos devam ser tomados em um assunto tão sensível”, relembra o professor.

Com as eleições presidenciais de 2024 chegando na Venezuela, o Brasil se preocupa em criar um cenário favorável para que as eleições ocorram de forma democrática e legítima. Na visão de Cunha, umas das finalidades da “viagem secreta” de Celso Amorim a Caracas foi justamente sondar os ânimos de Maduro para iniciar as estratégias de diálogo nesse sentido.

“No longo prazo, é possível que o governo brasileiro retome e lidere as ações da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), a fim de trazer outros estados para participar da retomada da democracia venezuelana. Vai depender se ele acredita que dá conta do recado sozinho, ou não. Vale lembrar que, na política externa, seguimos o princípio da não ingerência. Ou seja, no fim das contas, o Brasil não determina nada, ele pode apenas facilitar o diálogo político”, opina Cunha.

Crise na Nicarágua e sanções em Cuba

Da mesma forma que a ditadura da Venezuela, o caso da Nicarágua apareceu em diferentes discursos de ataques durante as eleições de 2022, tanto na boca de Jair Bolsonaro, como nas afirmações de Lula. Em uma das declarações, o petista mencionou que o opositor era “infinitamente pior” do que Daniel Ortega, acusado de crimes de tortura, prisões arbitrárias e deportação de ao menos 200 cidadãos nicaraguenses pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Depois de não assinar o documento que condenava os atos do ditador, os diplomatas brasileiros presentes no encontro tentaram abrandar o texto ao abrir brechas para possibilidades de diálogos com Ortega.

“A gente tem uma questão que é a seguinte: se o Lula tematiza isso, é quase como ele atravessar a rua para ir pisar numa casca de banana. Ele não tem muito o que ganhar, politicamente, e pode perder na exata medida em que ele vai se indispor com regimes ao redor do país, ele vai fechar portas para um processo negocial, eventualmente, e vai criar problemas internos com seu partido. Esse, sim, tem essas relações [com ditadores] mais à esquerda”, explica Dawisson Lopes, professor de política internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Lopes avalia que, em um primeiro momento, Lula não se envolva diretamente em uma interlocução com a Nicarágua, por se tratar de um caso mais “espinhoso”. Mesmo assim, o presidente deve ficar de olho nos próximos capítulos no território e buscar preservar espaços para a interlocução em encontros internacionais, sempre recusando a ideia de sanções econômicas, historicamente presente nas posições brasileiras em organizamos internacionais.

“Ao Brasil, não interessa uma região convulsionada, uma região turbulenta, e há uma boa vontade com Lula, uma capacidade maior de trânsito desse governo, naturalmente, do que no caso do governo anterior”, pontua o especialista.

No caso das sanções econômicas a ditaduras na América do Sul, Lula retomou o assunto durante encontro com Joe Biden, nos Estados Unidos, em fevereiro deste ano. O petista pediu ao líder norte-americano que reconsiderasse o embargo econômico imposto ao governo comunista de Cuba desde a década de 60. O presidente brasileiro avalia que não há qualquer comprovação de efetividade da medida, a não ser o prejuízo provocado às classes sociais mais vulneráveis.

Em novembro de 2022, Biden anunciou relaxamento nas sanções econômicas aplicadas ao governo de Maduro, depois de um encontro com a oposição, no México. A decisão, segundo Jorge Rodríguez, chefe da delegação do governo venezuelano, recuperou cerca de U$ 3 bilhões em investimentos.

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